sábado, 20 de julho de 2013

Augúrios


 
 
 
 
 
 
 
 
 
"Uma espécie específica de adivinhação praticada pelo Colégio de Áugures, em Roma, cujo dever era ler os presságios relacionados aos afazeres públicos. Os originais eram três, mas, na época de Júlio César, o número já tinha aumentado para 16, e Augusto César recebeu o poder de escolher quantos ele quisesse.
 
Havia cinco tipos oficiais de augúrios:
(1) ex coelo (do céu): trovão, relâmpago, meteoros, cometas e outros fenómenos celestes;
(2) ex avibus (de pássaros), que se subdividia em duas classes: (a) alites, o voo dos pássaros, especificamente a águia e o abutre; (b) oscines, a voz dos pássaros, especificamente a coruja, a gralha, o corvo e a galinha;
(3) ex tripudiis (do toque dos pássaros): se um pássaro evacuava ou não enquanto comia o que era considerado um presságio favorável;
(4) ex quadrupedibus (de animais): os movimentos e sons de animais e répteis de quatro patas;
(5) ex diris (de avisos): qualquer incidente casual que pudesse prenunciar desastre.

Esses cinco tipos de augúrios eram divididos pelos antigos em duas classes:
(1) auspicia impetrativa, sinais pedidos para orientação;
(2) auspicia oblativa, sinais ocorrendo de modo espontâneo.


Os deveres do Colégio dos Augures giravam mais em torno da primeira classe. Todos os actos oficiais eram sancionados por augúrios favoráveis ou postergados até que os augúrios fossem mais auspiciosos."


Fonte: Três Livros de Filosofia Oculta - Agrippa ( Notas ao Capitulo LIII)

quinta-feira, 18 de julho de 2013

CICUTA (Conium maculatum).


 
 
"Planta sumamente venenosa, pelo que se deve evitar seu uso interno sem indicação do médico. A cicuta pode ser facilmente confundida com o cerefolho e o perrexil. Para obviar funestas consequências, apontaremos as diferenças existentes entre as referidas plantas. A cicuta tem as folhas três vezes aladas; são folhinhas agudas, incindidas nos bordos. Seu cheiro é desagradável. O cerefolho tem as folhas semelhantes às da cicuta, porém são folhinhas curtas e largas. Seu cheiro lembra o do anis. O perrexil tem folhas inferiores duas vezes aladas; folhas largas, trioladas e em forma de cunha. Seu cheiro é muito pouco pronunciado. Para combater o envenenamento pela cicuta é preciso provocar o vomito e administrar, em seguida, os ácidos vegetais debilitados, tais como o suco de limão, o vinagre, etc. A cicuta não produz nenhum efeito tóxico nas cabras e carneiros, sendo venenosa para os coelhos, bois e cavalos. No homem provoca sede, dores de cabeça e do estômago, vertigens, delírios e, por último, esfriamento geral seguido da morte. Os frutos desta planta, que são menos ativos do que as folhas, utilizam-se para fabricar o anis. Aos condenados à pena máxima os gregos davam de beber uma beberagem feita à base de cicuta. A história lembra com isto a morte de Sócrates. Botânica oculta: O suco desta planta faz parte da pomada dos bruxos. Preparada com vinho, produz um sono letárgico nos pássaros."


In:

AS PLANTAS MÁGICAS
(BOTÂNICA OCULTA -) Paracelso


 

terça-feira, 16 de julho de 2013

SEPTEM SERMONES AD MORTUOS - Carl Gustav Jung

 
PRIMEIRO SERMÃO
 
"Os mortos retornaram de Jerusalém, onde não encontraram o que buscavam. Eles pediram para serem admitidos à minha presença e exigiram ser por mim instruídos; assim, eu os instruí:
 
Ouvi: Eu começo com nada. Nada é o mesmo que plenitude. No estado de infinito, plenitude é o mesmo que vazio. O Nada é ao mesmo tempo vazio e pleno. Pode-se também afirmar alguma outra coisa a respeito do Nada, ou seja, que é branco ou negro, existente ou inexistente. Aquilo que é infinito e eterno não possui qualidades porque contém todas as qualidades.
 
O Nada ou plenitude é por nós chamado de o PLEROMA. Nele, pensamento e existência cessam, porque o eterno é desprovido de qualidades. Nele, não existe ninguém, porque se existisse alguém, este então se diferenciaria do Pleroma e possuiria qualidades que o distinguiriam do Pleroma.
 
No Pleroma não existe nada e existe tudo: não é bom pensar sobre o Pleroma, pois fazê-lo significaria dissolução.
 
O MUNDO CRIADO não está no Pleroma, mas em si mesmo. O Pleroma é o princípio e o fim do mundo criado. O Pleroma penetra o mundo criado como a luz solar penetra toda a atmosfera. Embora o Pleroma penetre-o por completo, o mundo criado não participa dele, da mesma forma que um corpo sumamente transparente não se torna escuro ou colorido como resultado da passagem da luz por ele. Nós mesmos, no entanto, somos o Pleroma e assim sendo, o Pleroma está presente em nós. Mesmo no ponto mais minúsculo, o Pleroma está presente sem limite algum, eterna e completamente, porque pequeno e grande são qualidades estranhas ao Pleroma. Ele é o nada onipresente, completo e infinito. Eis porque vos falo do mundo criado como uma porção do Pleroma, mas unicamente em sentido alegórico; pois o Pleroma não se divide em partes, por ser o nada. Somos também o Pleroma como um todo; visto que num aspecto figurativo o Pleroma é um ponto excessivamente pequeno, hipotético, quase inexistente em nós, sendo
igualmente o firmamento ilimitado do cosmo à nossa volta. Por que então discorremos sobre o Pleroma, se ele é o todo e também o nada?
Eu vos falo como ponto de partida, e também para eliminar de vós a ilusão de que em algum lugar, dentro ou fora, existe algo absolutamente sólido e definido. Tudo o que chamam de definido e sólido não é mais do que relativo, porque somente o que está sujeito à mudança apresenta-se definido e sólido. O mundo criado está sujeito a mudar. Trata-se da única coisa sólida e definida, uma vez que possui qualidades. Em verdade, o próprio mundo criado nada mais é que uma qualidade.
 
Indagamos: como se originou a criação? As criaturas de fato têm origem, mas não o mundo criado, porque este é uma qualidade do Pleroma, da mesma forma que o incriado; a morte eterna também representa uma qualidade do Pleroma. A criação é eterna e onipresente. O Pleroma possui tudo: diferenciação e indiferenciação.
 
Diferenciação é criação. O mundo criado é de fato diferenciação. A diferenciação é a essência do mundo criado e, por essa razão, o que é criado gera também mais diferenciação. Eis porque o próprio homem é um divisor, porquanto sua essência é também diferenciação. Eis por que ele distingue as qualidades do Pleroma, qualidades essas que não existem. Essas divisões, o homem extrai de seu próprio ser. Eis por que o homem discorre sobre as qualidades do Pleroma, que são inexistentes
 
Vós me dizeis: Que benefício existe então em falar sobre o assunto, uma vez que se afirmou ser inútil pensar sobre o Pleroma? Eu vos digo essas coisas para libertar-vos da ilusão de que é possível pensar sobre o Pleroma. Quando falamos de divisões do Pleroma, falamos da posição de nossas próprias divisões, falamos de nosso próprio estado diferenciado; mas embora procedamos desta forma, na realidade nada dissemos sobre o Pleroma. No entanto, é necessário falarmos de nossa própria diferenciação. Eis por que devemos distinguir qualidades individuais.
 
Dizeis: Que mal não decorre do discriminar, pois nesse caso transcendemos os limites de nosso próprio ser; estendemo-nos além do mundo criado e mergulhamos no estado indiferenciado, outra qualidade do Pleroma. Submergimos no próprio Pleroma e deixamos de ser seres criados. Assim, tornamo-nos sujeitos à dissolução e ao nada.
Essa é a verdadeira morte do ser criado. Morremos na medida em que não somos capazes de discriminar.
Por essa razão, o impulso natural do ser criado volta-se para a diferenciação e para a luta contra o antigo e pernicioso estado de igualdade. A tendência natural chama-se Princípio de Individuação. Esse princípio constitui de fato a essência de todo ser criado. A partir de tudo isso, podeis prontamente reconhecer por que o princípio indiferenciado e a falta de discriminação representam um grande perigo para os seres criados. Eis por que devemos ser capazes de distinguir as qualidades do Pleroma.
Suas qualidades são os PARES DE OPOSTOS, tais como: o eficaz e o ineficaz, plenitude e o vazio, o vivo e o morto, diferença e igualdade, luz e treva, quente e frio, energia e matéria, tempo e espaço, bem e mal, beleza e fealdade, o um e os muitos e assim por diante.
Os pares de opostos são as qualidades do Pleroma: também são na verdade inexistentes, porque se anulam mutuamente.
Como nós mesmos somos o Pleroma, também possuímos essas qualidades presentes em nós. Visto que a essência do nosso ser é a diferenciação, possuímos essas qualidades em nome e sob o sinal da diferenciação, o que significa:
 
Primeiro: que em nós as qualidades estão diferenciadas, separadas, umas das outras e, dessa forma, não se anulam mutuamente; ao contrário, encontram-se em actividade. Eis por que somos vítimas dos pares de opostos. Porque em nós o Pleroma divide-se em dois.
 
Segundo: as qualidades pertencem ao Pleroma, e nós podemos e devemos partilhá-las somente em nome e sob o sinal da diferenciação. Devemos nos separar dessas qualidades. No Pleroma, elas se anulam mutuamente; em nós não. Porém, se soubermos percebermo-nos como seres à parte dos pares de opostos, obteremos a salvação.
Quando lutamos pelo bom e pelo belo, esquecemo-nos de nosso ser essencial, que é a diferenciação, e nos tornamos vítimas das qualidades do Pleroma, os pares de opostos. Lutamos para alcançar o bom e o belo, mas ao mesmo tempo obtemos o mau e o feio, porque no Pleroma estes são idênticos àqueles. Todavia, se permanecermos fiéis à nossa natureza, que é a diferenciação, então nos diferenciaremos do mau e do feio.
Só assim não imergimos no Pleroma, ou seja, no nada e na dissolução.
Discordareis, dizendo: Afirmastes que diferenciação e igualdade constituem também qualidades do Pleroma.
O que ocorre, quando lutamos pela diferenciação? Não somos no caso fiéis à nossa natureza e, portanto, devemos também ficar eventualmente em estado de igualdade, enquanto lutamos pela diferenciação? O que não deveis esquecer jamais é que o Pleroma não tem qualidades. Somos nós que criamos essas qualidades através do intelecto. Quando lutamos pela diferenciação ou pela igualdade, ou por outras qualidades, lutamos por pensamentos que fluem para nós a partir do Pleroma, ou seja, pensamentos sobre as qualidades inexistentes do Pleroma.
Enquanto perseguis essas idéias, vós vos precipitais novamente no Pleroma, chegando ao mesmo tempo à diferenciação e à igualdade. Não a vossa mente, mas o vosso ser constitui a diferenciação. Eis por que não deveríeis lutar pela diferenciação e pela discriminação como as conheceis, mas sim por VOSSO PRÓPRIO SER. Se de fato assim o fizéssemos, não teríeis necessidade de saber coisa alguma sobre o Pleroma e suas qualidades e, ainda assim, atingiríeis o vosso verdadeiro objectivo, devido à vossa natureza. No entanto, como o raciocínio aliena-vos de vossa real natureza, devo ensinar-vos o conhecimento para que possais manter vosso raciocínio sob controle.
 
O SEGUNDO SERMÃO
 
Os mortos se ergueram durante a noite junto às paredes e gritaram: Queremos saber sobre Deus! Onde está Deus?
 
-Deus não está morto; Ele está tão vivo quanto sempre esteve. Deus é o mundo criado, na medida em que é algo definido e, portanto, diferenciado do Pleroma. Deus é uma qualidade do Pleroma, e tudo o que afirmei sobre o mundo criado é igualmente verdadeiro no que a Ele se refere.
 
Entretanto, Deus se distingue do mundo criado, pois é menos definido e definível do que o mundo criado em geral. Ele é menos diferenciado que o mundo criado, porque a essência do seu SER é a efectiva plenitude; e só na medida se Sua definição e diferenciação que Ele é idêntico ao mundo criado; portanto, Ele representa a manifestação da efectiva plenitude do Pleroma.
 
Tudo o que não diferenciamos precipita-se no Pleroma e anula-se com seu oposto. Portanto, se não discernimos Deus, a plenitude efectiva elimina-se para nós. Deus é também o próprio Pleroma, da mesma forma que cada um dos pontos mais minúsculos dentro do mundo criado, bem como no plano incriado, constitui o próprio Pleroma.
 
O vazio efectivo é o ser do Demónio. Deus e Demónio são as primeiras manifestações do nada a que chamamos de Pleroma. Não importa se o Pleroma existe ou não existe, porque ele se anula em todas as coisas. O mundo criado, entretanto, é diferente. Na medida em que Deus e Demónio são seres criados, eles não se suprimem mutuamente, mas resistem um ao outro como opostos activos. Não necessitamos de prova da sua existência; basta que sejamos obrigados a falar sempre deles. Mesmo que eles não existissem, o ser criado (devido à sua própria natureza) os produziria continuamente, a partir do Pleroma.
 
Tudo o que se origina no Pleroma pela diferenciação constitui pares de opostos; portanto, Deus sempre tem consigo o Demónio.
 
Como aprendestes, esse inter-relacionamento é tão íntimo, tão indissolúvel em vossas vidas, que se apresenta como o próprio Pleroma. Isso porque ambos permanecem muito próximos do Pleroma, no qual todos os opostos se anulam e se unificam.
 
Deus e Demónio distinguem-se pela plenitude e pelo vazio, pela geração e pela destruição. A actividade é comum a ambos. A actividade unifica-os. Eis por que ela permanece acima de ambos, sendo Deus acima de Deus, por unificar plenitude e vazio em seu trabalho.
 
Há um Deus sobre o qual nada sabeis, porque os homens esqueceram-no. Nós o chamamos por seu nome:
ABRAXAS. Ele é menos definido que Deus ou o Demónio. Para distinguir Deus dele, chamamos a Deus Hélios, ou o Sol.
 
Abraxas é a actividade; nada pode resistir-lhe, excepto o irreal, e assim, o seu ser activo desenvolve-se livremente. O irreal não existe, portanto, não pode de fato resistir. Abraxas permanece acima do sol e acima do demónio. Ele é o improvável provável, que é poderoso no plano da irrealidade. Se o Pleroma pudesse ter uma existência, Abraxas seria sua manifestação.
 
Embora ele seja a própria actividade, não constitui um resultado específico, mas um resultado em geral.
 
Ele representa a não-realidade activa, porque não possui um resultado definido.
Ele é ainda um ser criado, na medida em que se diferencia do Pleroma.
 
O sol exerce um efeito definido, assim como o demónio; portanto, eles se nos apresentam muito mais efectivos do que o indefinível Abraxas.
 
Pois ele é poder, persistência e mutação.
 
-Nesse ponto, os mortos provocaram uma grande rebelião, porque eram cristãos.
 
O TERCEIRO SERMÃO
 
Os mortos aproximaram-se como névoa saída dos pântanos e gritaram: -Fala-nos mais sobre o deus supremo!
 
- Abraxas é o deus a quem é difícil conhecer. Seu poder é verdadeiramente supremo, porque o homem não o percebe de modo algum. O homem vê o summum bonum (bem supremo) do sol e também o infinum malum (mal sem fim) do demônio, mas Abraxas não, porque este é a própria vida indefinível, a mãe do bem e do mal igualmente.
 
A vida parece menor e mais fraca do que o summum bonum (bem supremo), daí a dificuldade de se conceber que Abraxas possa suplantar em seu poder o sol, que representa a fonte radiante de toda a força vital.
 
Abraxas é o sol e também o abismo eternamente hiante do vazio, do redutor e desagregador, o demônio.
 
O poder de Abraxas é duplo. Vós não podeis vê-lo, porque a vossos olhos a oposição a esse poder parece anulá-lo.
 
O que é dito pelo Deus-Sol é vida.
O que é dito pelo Demônio é morte.
 
Abraxas, no entanto, diz a palavra venerável e também a maldita, que é vida e morte ao mesmo tempo.
 
Abraxas gera a verdade e a falsidade, o bem e o mal, a luz e a treva, com a mesma palavra e no mesmo ato. Portanto, Abraxas é verdadeiramente o terrível.
 
Ele é magnífico como o leão no exato momento em que abate sua presa. Sua beleza equivale à beleza de uma manhã de primavera.
 
De fato, ele próprio é o Pã maior e também o menor. Ele é Príapo.
Ele é o monstro do inferno, o polvo de mil tentáculos, o contorcer de serpentes aladas e da loucura.
Ele é o hermafrodita da mais baixa origem.
Ele é o senhor dos sapos e das rãs que vivem na água e saem para a terra, cantando juntos ao meio-dia e à meia-noite.
Ele é plenitude unindo-se ao vazio;
Ele constituí as bodas sagradas;
Ele é o amor e o assassino do amor;
Ele é o santo e o seu traidor.
Ele é a luz mais brilhante do dia, e a mais profunda noite da loucura.
Vê-lo significa cegueira;
Conhecê-lo é enfermidade;
Adorá-lo é morte;
Temê-lo é sabedoria;
Não resistir-lhe significa libertação.
 
Deus vive detrás do Sol; o demônio vive atrás da noite. O que deus traz à existência a partir da luz, o demônio arrasta para a noite. Abraxas, entretanto, é o cosmo; sua gênese e sua dissolução. A cada dádiva do Deus-Sol, o demônio acrescenta sua maldição.
 
Tudo aquilo que pedis a Deus-Sol leva a uma ação do demônio. Tudo o que obtendes através do Deus-Sol aumenta o poder efetivo do demônio.
 
Assim é o terrível Abraxas.
Ele é o mais poderoso ser manifestado e nele a criação torna-se temerosa de si mesma.
Ele é o terror do filho, que ele sente contra a mãe.
Ele é o amor da mãe por seu filho.
Ele é o prazer da terra e a crueldade do céu.
Diante de sua face o homem fica paralisado.
Ante ele, não há pergunta nem resposta.
Ele é a vida da criação.
Ele é a atividade da diferenciação.
Ele é o amor do homem.
Ele é a fala do homem.
Ele é tanto o brilho como a sombra escura do homem.
Ele é a realidade enganosa.
- Nesse ponto, os mortos clamaram e deliraram porque ainda eram seres incompletos.
 
O QUARTO SERMÃO
 
Resmungando, os mortos encheram a sala e disseram: - Tu que és maldito, fala-nos sobre deuses e demônios!
 
-Deus-Sol é o bem supremo, o demônio é o oposto; portanto, tendes dois deuses. Há, contudo, inúmeros grandes bens e numerosos grandes males; entre eles existem dois deuses-demônios, um dos quais é o FLAMEJANTE e o outro, o FLORESCENTE. O flamejante é EROS em sua forma de chama. Ele brilha e devora. O florescente é a ÁRVORE DA VIDA; ela cresce verdejante e acumula matéria viva enquanto cresce. Eros flameja e então se apaga; a árvore da vida, no entanto, desenvolve-se lentamente através de incontáveis eras.
 
Bem e mal estão unidos na chama.
Bem e mal estão unidos no crescimento da árvore.
Vida e amor opõem-se mutuamente em sua divindade.
 
Imensurável como os agrupamentos de estrelas é o número de deuses e demônios. Cada estrela representa um deus e cada espaço ocupado por uma estrela, um demônio. E o vazio do todo é o Pleroma. A atividade do todo é Abraxas; só o irreal opõe-se a ele. O quatro constitui o número das divindades principais, porque quatro é o número das dimensões do mundo. O Um é o princípio; Deus-Sol. O Dois é Eros, porque ele se expande com uma luz brilhante e combina duas. O Três é a Árvore da Vida, porque ela preenche o espaço com corpos. O quatro é o demônio, porque ele abre tudo o que está fechado; ele dissolve tudo o que tem forma e corpo; ele é o destruidor, no qual todas as coisas dão em nada.
 
Abençoado sou, porque me é dado conhecer a multiplicidade e a diversidade dos deuses. Lastimo-vos, porque substituístes a unidade de Deus pela diversidade que não se pode converter em unidade. Por meio disso, criastes o tormento da incompreensão e a mutilação do mundo criado, cuja essência e lei é a diversidade. Como podeis ser leais à vossa natureza quando tentais fazer um dos muitos? O que fazeis aos deuses, também vos sobrevém. Todos vós se tornam, assim, iguais e, por isso, vossa natureza também, fica mutilada.
 
Em benefício do homem pode reinar a unidade, mas nunca em benefício de deus, pois existem muitos deuses, porém poucos homens. Os deuses são poderosos e suportam sua diversidade, visto que, como as estrelas, eles permanecem em solidão e separados por vastas distâncias uns dos outros. Os seres humanos são fracos e não conseguem suportar sua diversidade, por viverem próximos uns dos outros e desejarem companhia; assim sendo, não podem suportar os próprios e distintos isolamentos. Em prol da salvação, eu vos ensino aquilo que se deve eliminar, em favor do que eu próprio fui banido.
 
A multiplicidade dos deuses iguala a multiplicidade dos homens. Incontáveis deuses aguardam para tornarem-se homens. Inúmeros já o foram. O homem é um partícipe da essência dos deuses; ele vem dos deuses e vai para Deus.
 
Do mesmo modo que é inútil pensar sobre o Pleroma, é inútil adorar essa pluralidade de deuses. Menos útil ainda é adorar o primeiro Deus, a efetiva plenitude e o bem supremo. Através de nossas preces, não podemos nem acrescentar-lhe algo nem subtrair-lhe, porque o efetivo vazio tudo absorve. Os deuses de luz compõem o mundo celestial, que é múltiplo e estende-se até o infinito, expandindo-se ilimitadamente. Seu senhor supremo é o Deus-Sol.
 
Os deuses das trevas constituem o inferno. Eles não são complexos e têm a capacidade de diminuir e encolher infinitamente. Seu senhor mais profundo é o demônio, o espírito da lua, o servo da terra, que é menor, mais frio e mais inerte do que a terra.
 
Não há diferença no poder dos deuses celestiais e terrestres. Os celestiais expandem-se, os terrestres contraem-se. As duas direcções estendem-se ao infinito.
 
O QUINTO SERMÃO
 
Os mortos cheios de escárnio, gritaram: - Ensina-nos, ó tolo, sobre a Igreja e santa comunidade!
 
- O mundo dos deuses manifesta-se na espiritualidade e na sexualidade. Os deuses celestiais expressem-se na espiritualidade e os terrenos, na sexualidade.
 
A espiritualidade recebe e compreende. Ela é feminina, por isso nós a chamamos de MATER COELESTIS, a mãe celestial. A sexualidade gera e cria. Ela é masculina, portanto nós a chamamos de PHALLOS, o pai telúrico. A sexualidade do homem é mais terrena enquanto a sexualidade da mulher, mais celestial. A espiritualidade do homem é celestial, porquanto se move na direcção do maior. Por outro lado, a espiritualidade da mulher é mais terrena porque se move na direcção do menor.
 
Ilusória e demoníaca é a espiritualidade do homem que se dirige ao menor. Ilusória e demoníaca é a espiritualidade da mulher que se dirige ao maior. Cada uma deve dirigir-se a seu próprio lugar.
 
Homem e mulher tornam-se demônios um para o outro quando não separam seus caminhos espirituais, pois a natureza dos seres criados é sempre a natureza da diferenciação.
 
A sexualidade do homem volta-se para o terreno; a sexualidade da mulher volta-se para o espiritual. Homem e mulher tornam-se demônios um para o outro quando não distinguem suas duas formas de sexualidade.
 
O homem deve conhecer o que é menor, a mulher o que é maior. O homem deve separar-se da espiritualidade e também da sexualidade. Ele deve chamar a espiritualidade e mãe e entronizá-la entre o céu e a terra. Ele deve chamar a sexualidade de phallos, colocando-a entre o próprio ser e a terra, porque a mãe e phallos são demónios super-humanos e manifestações do mundo dos deuses. Eles se apresentam mais eficientes para nós do que os deuses por estarem mais próximos do nosso ser. Quando não puderdes distinguir entre vós próprios, de um lado, a sexualidade e espiritualidade, de outro, e quando não fordes capazes de considerar que ambos são seres superiores e exteriores a vós, então sereis vitimados por eles, i. e., pelas qualidades do Pleroma. Espiritualidade e sexualidade não constituem qualidades vossas, não são coisas que podeis possuir e apreender, ao contrário, trata-se de demónios poderosos, manifestações de deuses e, portanto, são muito superiores a vós e existem em si mesmas. Ninguém possui espiritualidade ou sexualidade para si mesmo; antes, estamos sujeitos às leis da sexualidade e da espiritualidade. Portanto, ninguém escapa a esses dois demónios. Deveis considerá-los demónios, causas comuns e perigos graves, assim como os deuses e, acima de tudo, o terrível Abraxas.
 
O homem é fraco, portanto a comunidade torna-se indispensável; se não a comunidade sob o signo da mãe, então aquela sob o signo de phallos. Não haver comunidade constitui sofrimento e enfermidade. A comunidade traz consigo fragmentação e dissolução. A diferenciação conduz à solidão. A solidão é contrária à comunidade. Devido à fraqueza da vontade humana, em oposição aos deuses e demônios e suas leis que não se pode escapar, a comunidade é necessária.
 
Eis por que devem existir tantas comunidades quantas forem necessárias; não por causa dos homens, mas por causa dos deuses. Os deuses forçam-nos a uma comunhão. Eles vos forçam a associar-vos tanto quanto necessário; mais do que isso, porém, converte-se num mal.
 
Em comunhão, cada um deve sujeitar-se ao outro, para a preservação da comunidade, visto que dela tendes necessidade. No estado de solidão, cada qual será colocado acima dos demais, para que possa conhecer-se e evitar a servidão. Na comunidade haverá abstinência.
 
Na solidão, deixai que haja desperdício de abundância. Porque a comunidade é profundidade enquanto a solidão, altura.
 
A verdadeira ordem na comunidade purifica e preserva.
A verdadeira ordem na solidão purifica e aumenta.
A comunidade dá-nos calor; a solidão, luz.
 
O SEXTO SERMÃO
 
O demónio da sexualidade insinua-se em nossa alma como uma serpente. Trata-se de uma alma semi-humana e chama-se pensamento-desejo.
 
O demônio da espiritualidade pousa em nossa alma como um pássaro branco. Trata-se de uma alma semi-humana e chama-se desejo-pensamento.
 
A serpente constitui uma alma telúrica, semi-demoníaca, um espírito relacionado com o espírito dos mortos. Com o espírito dos mortos, a serpente penetra vários objectos terrenos. Ela também instila temor de si no coração dos homens e inflama-lhes o desejo. A serpente geralmente tem carácter feminino e busca a companhia dos mortos. Ela se associa aos mortos presos à terra que não encontraram o caminho pelo qual se passa ao estado de solidão. A serpente é uma prostituta que se consorcia com o demónio e maus espíritos; ela é um espírito tirano e atormentador, sempre tentando as pessoas a cultivar a pior espécie de companhia.
 
O pássaro branco representa a alma semi-celestial do homem. Ele vive com a mãe, descendo ocasionalmente da morada materna. O pássaro é masculino e chama-se pensamento efetivo. Ele é casto e solitário, um mensageiro da mãe. Voa alto sobre a terra. Comanda a solidão. Traz mensagens de longe, daqueles que nos antecederam na partida, daqueles que alcançaram a perfeição. Leva nossas palavras até a mãe. A mãe intercede e adverte, mas não possui poderes contra os deuses. Ela é um veículo do sol.
 
A serpente desce às profundezas e, com sua astúcia, ao mesmo tempo paralisa e estimula o demónio fálico. Ela traz das profundezas os pensamentos mais ardilosos do demónio telúrico; pensamentos que rastejam por todas as passagens e tornam-se saturados de desejo. Embora não deseje sê-lo, ela nós é útil. A serpente escapa ao nosso alcance, nós a perseguimos, e assim ela nos mostra o caminho, o qual, com nossa limitada capacidade humana, não poderíamos encontrar.
 
-Os mortos ergueram o olhar com desprezo e disseram: - Cessa de falar-nos sobre deuses, demónios e almas. Sabemos de tudo isso em essência há muito tempo!
 
O SÉTIMO SERMÃO
 
À noite novamente retornaram os mortos, dizendo entre queixas: - Uma coisa mais devemos saber, pois esquecemos de discuti-la: ensina-nos a respeito do homem!
 
- O homem é um portal por meio do qual penetramos, do mundo exterior dos deuses, demónios e almas, no mundo interior; do mundo maior no mundo menor. Pequeno e insignificante é o homem; logo o deixamos para trás e assim entramos uma vez mais no espaço infinito, no microcosmo, na eternidade interior.
 
À imensurável distância cintila solitária uma estrela, no ponto mais alto do céu. Trata-se do único Deus desse solitário ser. É seu mundo, seu Pleroma, sua divindade.
 
Nesse mundo, o homem é Abraxas, que dá discernimento a seu próprio mundo e devora-o.
Essa estrela é o Deus do homem e seu destino.
 
Ela é sua divindade tutelar; nela o homem encontra o repouso.
 
A ela conduz a longa jornada da alma após a morte; nela reluzem todas as coisas que, de outro modo, poderiam afastar o homem do mundo maior, com o brilho de uma grande luz.
 
A esse Ser, o homem deveria orar.
Tal prece aumenta a luz da estrela.
Tal prece constrói uma ponte sobre a morte.
Ela aumenta a vida no microcosmo; quando o mundo exterior esfria, essa estrela ainda brilha.
 
Nada poderá separar o homem de seu Próprio Deus, se ele ao menos conseguir desviar o olhar do feérico espetáculo de Abraxas.
 
Homem aqui, Deus lá. Fraqueza e insignificância aqui, eterno poder criador lá. Aqui, há somente treva e frio húmido. Lá tudo é luz solar.
Tendo assim ouvido, os mortos silenciaram e elevaram-se como a fumaça da fogueira do pastor que guarda o seu rebanho à noite.
 
ANAGRAMA:
Nahtriheccunde
Gahinneverahtunin
Zehgessurklach
Zunnus "

Carl Gustav Jung
                                                                                                                                                                                 

Discurso da Iniciação



"1 "É Deus, sim, Deus, ó Asclépios, que te guiou até nós para que tomasses parte num colóquio divino, tanto que, e bem dizer, de todos que tivemos até agora, ou dos que nos inspiraram a potência do alto, parecerá pela sua escrupulosa piedade, o mais divino. Se te mostras capaz de compreendê-lo, teu espírito será cumulado de todos os bens, se é que existem muitos bens e não apenas um que os contenha a todos. Pois discerne-se entre um e outro termo uma relação recíproca - tudo depende de um único e esse Um é o Todo: estão tão estreitamente ligados que não se saberia separar um do outro. Mas isto, meu próprio discurso vai te ensinar se o escutas com diligente atenção. Todavia, ó Asclépios, o percurso não é longo, vá chamar Tat, para que seja um dos nossos.
Assim que entrou, Asclépios propôs a admissão de Hammon. - Não somos tão ciosos, disse Trismegistos, a ponto de afastar Hammon de nosso grupo; pois eu me recordo, muitos de meus escritos lhe foram dedicados, bem como a Tat, meu filho amantíssimo e caríssimo, muitos de meus tratados de física e uma pluralidade de obras exotéricas.
É teu nome, portanto, que eu quero colocar na abertura desse tratado. Não chama mais ninguém além de Hammon: um discurso tão religioso acerca de um tão grande objeto não deve ser profanado pela presença de um numeroso auditório. É uma impiedade divulgar à massa um ensino repleto da completa majestade divina.
Quando Hammon entrou no santuário e o fervor dos quatro homens e a presença de Deus preencheram esse santo lugar, assim que, no silêncio conveniente, todos os espíritos e todos os corações estavam presos com veneração aos lábios de Hermes, o divino Cupido começou nestes termos:
2 "Ó Asclépios; toda alma humana é imortal, mas não são todas do mesmo modo: diferem segundo o modo e o tempo.
- Não é, então, verdadeiro, ó Trismegistos, que todas as almas sejam da mesma qualidade?
- Deixaste rapidamente de seguir, ó Asclépios, a verdadeira seqüência do raciocínio! Não disse eu que tudo é um e que o Um é o Todo, porque as coisas existiram no Criador antes que as criasse? E não foi sem razão que o chamaram Todo, e ele de quem as coisas são membros. Tenha cuidado de lembrar-te, ao longo de todo esse discurso, daquele que sozinho é tudo ou que é o criador de tudo.
Tudo desce do céu sobre a terra, na água e no ar. Do fogo, somente o que tende de baixo para o alto é vivificante; o que tende para baixo é subordinado ao que sobe. Mas tudo o que desce do alto é gerador; tudo o que se exala para o alto é nutridor. A terra que é a única que permanece em repouso em seu lugar, é o receptáculo das coisas, recebe em si todos os gêneros e, de novo, faz com que apareçam. Aí está o todo que, como te recordas, contém tudo e é tudo. A alma e a matéria, são abraçadas pela natureza e são postas em movimento por ela, com uma tal diversidade no aspecto multiforme de tudo o que toma forma que aí se reconhece um número infinito de espécies que, embora distintas pela diferença de suas qualidades, são todavia unidas de uma tal maneira que o Todo parece um e que do Um tudo parece ter saído.
3 Ora, os elementos graças aos quais a matéria inteira tomou forma, são em número de quatro: fogo, água, terra, ar; um mundo, uma alma, um deus.
Agora, atem-te inteiramente ao que vou dizer, com toda a força da tua inteligência, toda a fineza de teu espírito. Pois a doutrina da divindade, que exige para ser conhecida uma aplicação do intelecto que só pode provir de Deus, parece bastante com um rio torrencial que se precipita do alto com uma violenta impetuosidade, que exige a atenção, não somente daquele que escuta, mas também daquele que fala.
O céu, deus perceptível aos sentidos, governa os corpos, cujo crescimento e declínio estão a cargo do sol e da lua. O céu por sua vez, a alma, e todos os seres do mundo, são regidos por aquele que os criou, Deus. Ora, desses corpos celestes, todos igualmente regidos por Deus, expandem-se contínuos eflúvios através do mundo e através da alma de todos os gêneros e dos indivíduos, de um lado e outro da natureza. Todavia a matéria foi preparada por Deus para ser o receptáculo das formas sensíveis de toda aparência e a natureza imprimindo as formas sensíveis na matéria por meio dos quatro elementos, prolonga até ao céu e série de seres para que agradem aos olhares divinos.
4 Ora, todos os seres dependentes dos corpos do alto, distribuem-se em formas sensíveis da forma que vou dizer. Os indivíduos de cada gênero seguem a forma de seu gênero, de forma que o gênero seja o todo, um indivíduo uma parte do gênero.
Desta forma, o gênero dos deuses produzirá os indivíduos deuses.
O gênero dos daimons e similarmente os dos humanos, bem como o dos pássaros e de todos os seres contidos pelo mundo, engendram indivíduos que lhe são semelhantes. Existe um outro gênero de viventes, sem alma, para dizer a verdade, mas não sem faculdades sensitivas, de modo que os bons tratos os fazem crescer e os maus decrescer e perecer; entendo por isso todos os seres que tomam vida na terra pelo bom estado das raízes e do caule, desse gênero de seres, os indivíduos estão dispersos por toda a terra. Quanto ao céu, está pleno de Deus. Os gêneros de seres que acabo de mencionar ocupam todo o espaço até os lugares próprios dos gêneros dos quais os indivíduos, todos sem exceção, são imortais. Pois o indivíduo é uma parte do gênero - o ser humano é parte da humanidade - e necessariamente segue a qualidade de seu gênero. E, se bem que todos os gêneros sejam imortais, os indivíduos não são todos imortais.
No caso da divindade, o gênero e os indivíduos são imortais; nas outras raças de viventes, o gênero é imortal e os indivíduos mortais, mas nem por isso cessa a eternidade do gênero que desenvolve sua duração pela fecundidade reprodutora. Destarte, os indivíduos são mortais, os gêneros não o são: o ser humano é mortal, a humanidade imortal.
5 Todavia os indivíduos de cada gênero comunicam-se com todos os outros gêneros - tenham sido, estes indivíduos, produzidos anteriormente, tenham nascido daqueles que foram produzidos. Portanto, todos os seres que são produzidos ou pelos deuses, ou pelos daimons, ou pelos homens, são indivíduos inteiramente semelhantes e seus gêneros respectivos: pois os corpos não podem receber suas formas sem a vontade divina, os indivíduos sua figura sem o concurso dos daimons e os seres inanimados não podem ser plantados e criados sem a mão do homem. Aqueles que entre os daimons saem de seu gênero para atingir um outro gênero são levados a entrar em contato com um indivíduo do gênero divino, são tidos, graças a essa vizinhança e a esse intercâmbio, por semelhantes aos deuses.
Por outro lado, aqueles daimons que perseveram na qualidade de seu gênero são chamados daimons amigos dos humanos. O mesmo sucede relativamente aos humanos: esses cobrem na verdade um campo maior. Pois os indivíduos humanos são diversos e de mais de um caráter: provenientes do alto, do lugar onde tiveram comércio com o gênero de que se falou, contraíram muitas ligações com todos os outros gêneros e com o maior número deles por necessidade. Este ser humano se aproxima dos deuses que graças ao espírito que o aparenta aos deuses, uniu-se a eles por uma religião inspirada do céu; este outro se aproxima dos daimons por ter se unido a eles; aqueles permanecem simplesmente humanos, contentes que estão com a posição intermediária de seu gênero; e todos os seres do gênero humano assemelhar-se-ão ao gênero do qual tenham freqüentado os indivíduos. 6 Assim é uma grande maravilha o ser humano, um vivente digno de adoração e honra. Pois passa a possuir a natureza de um deus como se fosse um deus, possui familiaridade com o gênero dos daimons sabendo que possuem a mesma origem; despreza esta parte de sua natureza que é apenas humana pois depositou sua esperança na divindade da outra parte. Oh! de que mistura privilegiada é feita a natureza humana! Unido aos deuses - pelo que possui de divino e que o aparenta a eles; a parte de seu ser que o faz terrestre despreza-a em si mesmo; todos os outros viventes aos quais se sabe ligado em virtude do plano celeste, prende-se-lhes por um laço de amor e eleva seus olhares para o céu. Tal é então a sua posição privilegiada de intermediário que ama os seres que lhe são inferiores, como é amado por aqueles que o dominam. Cuida da terra, mistura-se aos elementos pela velocidade de seus pensamentos, pela ponte do espírito atira-se no abismo do mar. Tudo lhe é acessível; o céu não lhe parece muito alto, pois mede-o como próximo graças à sua engenhosidade. O olhar que seu espírito dirige, nenhuma miragem ofusca; a terra nunca é tão compacta que consiga impedir seu trabalho; a imensidão das profundidades marinhas não obscurecem a sua visão que mergulha. É ao mesmo tempo as coisas e está em toda parte.
Entre todos esses gêneros de seres, aqueles que são providos de uma alma tem raízes que os atingem do alto para baixo; por outro lado os seres desprovidos de alma possuem raízes que vêm de baixo para o alto. Certos seres se alimentam de alimentos de duas espécies, outros, de alimentos de uma só espécie. Existem dois tipos de alimentos, os da alma e os do corpo, as duas partes componentes do vivente. A alma é alimentada pelo movimento sempre mantido do céu. Os corpos devem seu crescimento à água e à terra, alimentos do mundo inferior, o sopro que preenche o universo, espalha-se em todos os seres animados e lhes dá vida, enquanto que o ser humano, além do entendimento, recebe o intelecto, quinta parte, única proveniente do éter, dada ao ser humano como um dom. Mas de todos os seres que possuem vida, somente o ser humano possui intelecto, e este o eleva, exalta, de forma que possa atingir o conhecimento do plano divino. Por outra parte, como fui levado a falar do intelecto, voltarei a falar acerca de sua doutrina: pois é uma doutrina muito alta e santa, não menos alta que aquela que trata da própria divindade. Mas terminemos nosso assunto.
7 Falei desde o início desta união com os deuses, da qual são seres humanos os únicos a fruir pelo favor dos mesmos, referi-me a esses dentre os humanos que obtiveram a felicidade suprema de adquirir esta faculdade divina da intelecção, este intelecto mais divino que existe somente em Deus e no entendimento humano. - Então, ó Trismegistos, o intelecto não é de mesma qualidade em todos os homens?
- Não, ó Asclépios, nem todos atingiram o verdadeiro conhecimento, mas, em seu cego impulso, sem nada ter visto da verdadeira natureza das coisas, deixam-se arrastar por uma ilusão que cria a malícia nas almas e faz cair o melhor dos viventes até à natureza da besta e à condição dos brutos. Mas o que se refere ao intelecto e sujeitos conexos, será tratado completamente quando vos falarei do sopro.
Unico entre os viventes, o ser humano é duplo, e uma das partes que o compõem é simples, aquela que os Gregos chamam de essencial, e nós, formada à semelhança de Deus'. A outra parte é quádrupla, aquela que os Gregos chamam `material' e nós, `terrestre'. É dela que foi feito nosso corpo, que serve de envoltório e esta parte do ser humano que nós acabamos de dizer que é divina, porque neste abrigo, a divindade do espírito puro, repousa apenas com eles, como que dividida, atrás do muro do corpo.
- Por que foi necessário, ó Trismegistos, que o ser humano fosse estabelecido na matéria em lugar de viver na felicidade suprema na região onde Deus habita?
- Eis uma boa questão, Asclépios, e peço a Deus que me dê os meios de respondê-la. Pois se tudo depende de sua vontade, essas discussões sobre o Todo supremo, esse Todo que faz o objeto de nossa pesquisa atual, sobretudo.
8 Escuta então, ó Asclépios. Quando o Senhor e o Criador das coisas, que chamamos com justiça Deus, faz, segundo após ele, o deus visível e sensível, esse segundo deus, se o digo sensível, não é que queira dizer que seja ele mesmo dotado de sensação (se ele o é ou não, o discutiremos em um outro momento), mas porque cai sob o sentido visual - quando Deus então produziu este ser, o primeiro que tirou de si mesmo, mas o segundo depois dele, e que este lhe pareceu belo, pois estava cumulado da bondade de todos seres, amou-o como fruto de sua divindade. Então em Deus todo-poderoso e bom, quis que existisse um outro ser que pudesse contemplar aquilo que havia tirado de si mesmo e prontamente criou o ser humano, cuja razão e cuidado com as coisas devem ser à imitação dos de Deus. Pois a vontade, em Deus, é o cumprimento mesmo do ato, pois querer e fazer são coisas realizadas por ele no mesmo instante. Ora, após haver criado o ser humano essencial, como visse que esse ser humano não poderia cuidar das coisas se não o cobrisse com um envoltório material, deu-lhe um corpo por domicílio e prescreveu que todos os seres humanos fossem tais, compondo de uma e outra natureza, uma fusão e uma mistura únicas na proporção conveniente. Foi desta forma - que conformou o ser humano, da natureza do espírito e do corpo, isto é do eterno e do mortal, para que o vivente formado dessa forma pudesse satisfazer à sua dupla origem, admirar e adorar as coisas celestes, tomar conta das coisas terrestres e governá-las.
Agora, por coisas mortais não entendo a terra e a água, esses dois elementos que, entre os quatro, a natureza colocou à disposição do ser humano, mas tudo o que o ser humano produz, seja nesses elementos, seja tirando desses elementos, por exemplo a cultura do solo, as pastagens, as construções, os portos, a navegação, as relações sociais, as trocas mútuas, as obras que constituem o liame mais sólido de ser humano a ser humano e entre o ser humano e esta parte do mundo que é feita de terra a água. Esta parte terrestre do mundo é mantida pelo conhecimento a prática das artes e das ciências, sem as quais Deus não quis que o mundo pudesse passar a ser perfeito. Pois o que Deus decretou deve ser necessário e cumprido, quer uma coisa e ela está feita e não se pode acredïtar que Deus volte atrás alguma vez acerca do que decretou um dia, pois sabia muito antes que esta coisa se produziria e que o agradaria.
9 Mas percebo bem, ó Asclépios, com qual impaciente desejo de alma queres compreender como o ser humano pode fazer, do céu e dos seres que aí se encontram, o objeto de seu amor e de seus cuidados. Escuta, ó Asclépios.
Amar o deus do céu e todos os seres celestes é unicamente prestar-lhes uma contínua reverência. Ora, de todos os viventes, divinos e mortais, nenhum outro a prestou, senão o homem. Esses testemunhos humanos de admiração, de adoração, de louvor, de reverência, fazem a delícia do céu e dos seres celestes. E é justo que a divindade suprema tenha enviado cá para baixo o coro das Musas entre os homens para que o mundo terrestre não pareça muito selvagem, privado da doçura da música, mas que contrariamente, pelos seus cantos inspirados pelas Musas, os homens possam oferecer seus louvores àquele que sozinho é o Todo e o pai de todos, e que desta forma, aos louvores celestes responda sempre, na terra também, uma suave harmonia. Alguns humanos, em muito pequeno número, dotados de uma alma pura, receberam como parte a augusta função de elevar seus olhos para o céu. Mas todos aqueles que, em virtude da mistura de sua dupla natureza, deixaram-se restar, pelo peso do corpo, a um nível inferior de conhecimento, destinam-se ao cuidado dos elementos ou, ainda, dos inferiores. O ser humano é portanto um vivente, e não digo que é inferior, pelo fato que seja em parte mortal: ao contrário, pode ser que tenha sido enriquecido pela mortalidade por ter, assim composto, mais habilidade e eficácia em vista de um propósito determinado. Pois não teria podido cumprir sua dupla função se não fosse composto das duas substâncias, é preciso ser de uma e de outra, para ser capaz ao mesmo tempo de cuidar das coisas terrestres e amar a divindade.
10 Quanto ao assunto que vou tratar agora, ó Asclépios, desejo que mantenhas com uma atenção penetrante todo o ardor de teu espírito. Com efeito, se a maior parte não acredita nessa doutrina, não deve ser, entretanto, recebida como menos sã e verdadeira pelas almas mais santas. Começo então.
Deus, mestre da eternidade, é o primeiro; o mundo o segundo; o ser humano é o terceiro. Deus é o criador do mundo e de todos os seres que aí se encontram, governando ao mesmo tempo as coisas, em conjunção com o ser humano que governa também o mundo formado por Deus. Se o ser humano assume esse ofício em tudo que comporta, entendo que esse governo é sua função própria, faz de forma que seja para o mundo, aquilo que o mundo é para si: um ornamento, se bem que, por essa divina estrutura do homem, concorda-se em chamá-lo um mundo, o grego o diz mais justamente uma ordem (kosmos). O ser humano se conhece, conhece também o mundo, este conhecimento faz com que ele lembre o que convém a seu papel e reconheça quais coisas servem para seu uso, e serviço de que e de quem deve se colocar, oferecendo a Deus seus louvores e suas ações de graça as mais vivas, reverenciando a imagem de Deus sem esquecer que é também a segunda imagem: pois Deus possui duas imagens, o mundo e o ser humano. De onde resulta que o ser humano constitui apenas uma única liga, por aquela parte pela qual, sendo feito, com elementos superiores, da alma e do intelecto, do espírito e da razão, é divino, parece possuir os meios de subir até aos céus, enquanto que pela parte material, composta de fogo e de terra, de água e de ar, é mortal e permanece preso à terra, com medo que possa deixá-la vazia e abandonar as coisas confiadas à sua guarda. É desta forma que a natureza humana, em parte divina, foi criada também em parte mortal pois foi estabelecida em um corpo.
11 A regra desse ser duplo, quero dizer, o ser humano, é antes de tudo a piedade, que tem por conseqüência a bondade. Mas esta bondade não se mostra em sua perfeição, se não foi fortificada contra o desejo de tudo o que é estranho ao ser humano, pela virtude do desprezo. É necessário tomar por estrangeiras, e tudo no ser humano é parente do divino, as coisas terrestres que se possuem para satisfazer aos desejos do corpo, são chamadas, muito bem, possessões, pois não nasceram conosco, mas foram adquiridas por nós após o nascimento: e é daí que lhes advém o nome de possessões. As coisas deste tipo são estranhas ao ser humano, mesmo o corpo: por conseqüência, devemos desprezar não somente os objetos de nossos apetites, mas a fonte de onde decorre em nós esse vício do apetite. Pois, segundo a direção mesmo que me faz seguir o rigor do raciocínio, o ser humano não deveria ser humano senão na medida em que, pela contemplação da divindade, despreza e desdenha a parte mortal que lhe foi unida pela necessidade que tem de cuidar do mundo inferior.
Com efeito, para que o ser humano seja completo em cada uma de suas partes, observa que foi dotado em cada uma delas quatro elementos principais: as mãos e os pés que fazem respectivamente dois pares e que, com os outros membros corporais, lhe permitem estar ao serviço da parte inferior, isto é, terrestre, do mundo; e da outra parte estas quatro faculdades, o espírito, o intelecto, a memória e a previdência, graças às quais conhece as coisas divinas e as contempla. Daí advém o fato do ser humano escrutar com uma inquieta curiosidade as diferenças das coisas, suas qualidades, suas operações e suas grandezas, e que todavia, entravado pelo peso e maligna influência de um corpo muito forte para ele, não possa penetrar as verdadeiras causas da natureza.
Assim, este ser humano feito desta forma, que recebeu do Deus supremo o encargo desse serviço a esse culto, se vela pela ordem do mundo através de um trabalho bem ordenado, se honra a Deus piedosamente, se obedece de maneira digna e conveniente à vontade de Deus nas tarefas que lhe foram confiadas, um humano assim, que recompensa deverá receber? - Pois, por ser o mundo obra de Deus, o que com diligência conserva e aumenta a beleza do mundo coopera com a vontade de Deus, posto que emprega seu corpo e consagra todo dia, seu trabalho e seus desvelos a adornar a beleza que Deus criou com uma intenção divina. - Oue recompensa deverá receber, à não ser aquela que receberam nossos pais maiores e que, em nossas mais ferventes súplicas, desejamos receber um dia de maneira análoga, se assim o quiser a vontade divina, isto é, uma vez concluído nosso serviço, exonerados da vigilância do mundo material e livres dos laços da natureza mortal, Deus nos reconduza, puros e santos, à condição normal da parte superior de nós mesmos que é divina?
12 - O que dizes é justo e verdadeiro, ó Trismegistos!
- Tal é com efeito a recompensa que aguarda aos que levam uma vida de piedade para com Deus e de atento cuidado com o mundo. Em contrapartida, os que tenham vivido no mal e na impiedade, além de sentir que o retorno ao céu lhes é negado são condenados a passar a corpos de outra espécie em virtude de uma migração vergonhosa, indigna da santidade do espírito.
- Segundo a marcha que segue teu discurso, ó Trismegistos, relativamente à esperança da imortalidade futura, as almas correm grande perigo nesta vida terrestre.
- Certamente, porém isto para uns parece algo inacreditável, para outros algo fabuloso, para outros inclusive, algo ridículo. Pois, que coisa doce é com efeito, nesta vida corporal, o gozo proveniente dos bens possuídos! Este prazer, como se pode dizer, prende a alma pelo cólon para que o ser humano se prenda a esta parte dele pela que é mortal, e além do mais o vício, invejoso da imortalidade, não suporta que alguém reconheça a sua parte divina.
Posso afirmar-te, como profecia: depois de nós, já não haverá amor sincero à filosofia, a qual consiste no único desejo de melhor conhecer a divindade por meio de uma contemplação habitual e uma santa piedade. Pois muitos já a estão corrompendo de inúmeras maneiras.
- De qualquer maneira a fazem incompreensível e de que forma a corrompem de inúmeras maneiras?
13 - Da seguinte maneira, ó Asclépios, através de um trabaIho cheio de astúcia, misturam-na com diversas ciências ininteligíveis, a aritmética, a música, e a geometria. Porém a filosofia pura, aquela que depende apenas da piedade relativa a Deus, não deve se preocupar com as outras ciências, a não ser para admirar o retorno dos astros à sua posição primitiva, suas posições pré-determinadas e o curso de suas revoluções obedecendo à lei dos números para, por meio do conhecimento das dimensões, das qualidades, das quantidades da terra, das profundezas do mar, da força do fogo, das operações e da natureza dessas coisas, sentir-se levada a admirar, adorar e bendizer a arte e a inteligência de Deus. A formação musical confere apenas o conhecimento de como se ordena este conjunto do universo a que plano divino distribuiu as coisas: pois esta ordem, em que as coisas foram reunidas em um mesmo todo por uma razão de artistas, produzirá uma espécie de concerto infinitamente suave e verdadeiro, com uma música divina. 14 Desta forma, os humanos que virão depois de nós, enganados pela astúcia dos sofistas, deixar-se-ão apartar da verdadeira, pura e santa filosofia. Adorar a divindade com um coração e uma alma simples, venerar as obras de Deus, louvar a vontade divina que, é a única a estar infinitamente plena de bem, tal é a filosofia não maculada por nenhuma maligna curiosidade do espírito.
Mas isto é o suficiente quanto a esse tratado. Comecemos a falar do sopro ou pneuma e de outros temas semelhantes. (NT. - um pequeno problema se nos apresenta: 'pneuma' em grego não é perfeitamente equivalente ao 'espírito', em latim; `pneuma' tem um sentido material, que `espírito' não consegue transmitir. É conveniente ter isto em mente no decurso deste tratado.)
No princípio existia Deus e 'Hyle' - que é a forma pela qual os gregos designam a matéria - (NT. - Observe-se que aqui vale a advertência anterior ao `pneuma', mas com os pés voltados para cima, isto é, `hyle' tem um sentido abstrato que `matéria' não consegue transmitir.) O sopro estava com a matéria, ou melhor estava na matéria, porém não da mesma maneira que estava em Deus ou que estavam em Deus os princípios de onde o mundo tirou suas origens. Pois se as coisas não possuíam ainda existência, posto que não haviam sido produzidas, nem por isso existiam menos naquilo de que deveriam nascer. - Pois 'carente de geração' não se diz somente das coisas que ainda não foram produzidas, mas também das coisas que não possuem o poder de engendrar, de modo que delas nada pode nascer. Destarte, todos os seres que possuem em si a faculade natural de engendrar são, por este mesmo fato, capazes de engendrar: e deles pode nascer alguma coisa, mesmo no caso de terem nascido de si mesmos, pois ninguém duvida do fato de que dos seres que nascem de si mesmos, possam nascer facilmente os principios de onde as coisas tiram sua origem. Conseqüentemente, Deus, que existe sempre, Deus eterno, não pode ser engendrado nem o poderia ter sido, é, foi e sempre será. Esta é, portanto a natureza de Deus, que saiu de si mesmo completamente.
Enquanto a natureza material e o sopro, por mais evidentemente que sejam não-engendrados desde o princípio, têm em si o poder e a faculdade natural de nascer e de engendrar. Pois o princípio da geração é uma das propriedades da matéria: esta possui em si mesma o poder e a capacidade fundamental de conceber e dar à luz. É pois capaz de engendrar por si só, sem o concurso de nenhum elemento estranho.
15 Contrariamente, aqueles seres que não possuem a faculdade de conceber a não ser através da cópula com outro ser, devem ser considerados como seres limitados, de forma que o espaço, que contém o mundo e tudo que se encontra nele, é evidentemente não engendrado, possuindo como possui em si mesmo um poder de geração universal. Por 'espaço' entendo aquilo em que o conjunto das coisas está contido. Pois todo esse conjunto não teria podido existir se não houvesse espaço para conter o ser das coisas - pois nenhuma coisa pode existir sem que se lhe tenha preparado um lugar. E também não poderiam ser discernidas nem as qualidades, nem as magnitudes, nem as posições, nem as operações das coisas que estivessem em parte alguma.
Portanto, também a matéria, quando ainda não havia sido engendrada, continha, entretanto, em si mesma, o princípio de toda geração, pois oferece às coisas um seio inesgotavelmente fecundo e adequado para sua concepção. Eis então no que se resume toda a qualidade da matéria: é capaz de engendrar embora não seja engendrada. Bem, se toma parte da natureza da matéria o ser capaz de engendrar, disto resulta que esta mesma matéria é absolutamente capaz de gerar o mal.
16 Não disse então, ó Asclépios e Hammon! o que muitos repetem: "Não poderia ser afastado e abolido o mal da Natureza, por Deus?" Essas pessoas não merecem absolutamente resposta. Todavia, em vossa atenção, quero prosseguir explicando este fato. Dizem, com efeito, que Deus deveria libertar o mundo do mal; porém o mal está fixado no mundo que parece ser um membro deste. No entanto, o Deus supremo tomou de antemão suas precauções contra o mal, da maneira mais racional que foi possível, ao se dignar dar gratuitamente às almas humanas o intelecto, a ciência e o entendimento. Por meio destas faculdades, graças às quais nos elevamos acima de todos os seres viventes e somente por elas, podemos escapar às armadilhas, aos ardis e às corrupções do mal. Se um ser humano pode evitar tudo isto ao primeiro olhar, antes de ter se envolvido totalmente, deve-o a estas muralhas ou defesas que lhe foram previstas pela sabedoria e prudência divina: pois toda ciência humana tem seu fundamento na soberana vontade de Deus.
Relativamente ao sopro é ele que procura e mantém a vida em todos os seres do mundo, o qual obedece, como um órgão ou máquina ou instrumento, à vontade do Deus Supremo. Estas explicações são suficientes para nosso intento.
Inteligível somente para o pensamento, o Deus chamado Sumo rege e governa este deus perceptível pelos sentidos que compreende em si mesmo todo lugar, toda substância das coisas, toda natureza dos seres que nascem e engendram, a toda classe possível de qualidade e de grandeza ou magnitude.
17 O sopro é que move e dirige todas as formas sensíveis contidas no mundo, cada uma segundo a natureza própria que Deus lhe haja conferido. Enquanto a matéria é o receptáculo das coisas, em que todos os seres estão em movimento, formando uma massa compacta. Estes são governados por Deus, que dispensa a cada um dos seres o que lhe é necessário. E Deus preenche as coisas de sopro, inalando-o em cada um deles segundo a medida de sua capacidade natural.
Esta bola oca semelhante a uma esfera que é o mundo, devido à sua qualidade e à sua forma, não pode ser vista em sua totalidade; escolhe um ponto qualquer da esfera para olhar de cima para baixo: nunca poderás, deste ponto, ver o que há no fundo. Por essa razão muitos lhe atribuem a mesma natureza que o espaço e as mesmas propriedades. Somente devido às formas sensíveis nela impressas como cópias das formas ideais, atribui-se a ela mesma uma espécie de visibilidade, já que aparece à vista como um quadro pintado; porém, na realidade, é em si mesma sempre invisível. Daí resulta que o fundo da esfera, se é uma parte ou um lugar da esfera, se chame em grego Hades (`idein' em grego significa ver) - já que não é possível ver o fundo da esfera. E também por esta razão que as formas sensíveis são chamadas "ideai" ou idéias, porque podem ser vistas. Assim pois, o mundo dos infernos é chamado em grego `Hades' porque não é visível e em latim `Inferi' porque se encontra na parte mais baixa da esfera.
Essas são, pois, as causas originárias e, por assim dizer, capitais das coisas, pois nelas ou por meio delas ou a partir delas existem as coisas.
18 - De que natureza são estas coisas, ó Trismegistos!
- Material, por assim dizer, é a substância de cada uma das formas sensíveis que há no mundo, seja qual for a sua forma; por isto a matéria nutre os corpos, e o sopro as almas. Porém o intelecto, esse dom celestial da humanidade do qual apenas a humanidade possui o afortunado gozo - e assim mesmo nem todos os seus membros, apenas um reduzido número, o daqueles cuja alma está disposta de tal forma que está apta a receber um benefício tão grande; o intelecto é a luz da alma humana da mesma maneira que o sol o é do mundo, e a ilumina mais ainda: pois tudo o que é iluminado pelo sol se vê privado de tempo em tempo desta luz pela interposição da terra e da lua quando chega a noite, o intelecto uma vez tendo se mesclado e fundido com a alma humana se faz uma única e mesma substância com ela por meio de uma íntima fusão, de forma que as almas assim mescladas nunca mais são obscurecidas pelas trevas do erro. Por esta razão diz-se com acerto que a alma dos deuses em sua totalidade são formadas pelo intelecto. Eu não afirmo que assim sejam as almas de todos os deuses, mas tão-somente a dos grandes deuses, dos deuses superiores.
- Quais são os deuses aos quais chamamos chefes das coisas ou princípios das causas absolutamente primeiras, ó Trismegistos?
- Vou desvelar-te grandes segredos, vou desvelar-te mistérios divinos e antes de começar, imploro o favor celestial.
Há muitos gêneros de deuses, dentre esse número, uns são inteligíveis, outros sensíveis. Ao chamar alguns de inteligíveis não se quer dizer que permaneçam à margem de nosso conhecimento: longe disto, conhecemo-los melhor que àqueles que chamamos visíveis; esta exposição o fará ver e o verás por ti mesmo se prestares atenção. Pois esta doutrina sublime e por isto mesmo demasiado divina para não superar as forças da inteligência humana, se não a recebes ouvindo com todos os teus ouvidos as palavras do mestre, não farás mais que voar e fluir através do espírito, ou melhor ainda virá a refluir sobre si mesmo e a confundir-se em sua fonte.
Existem pois os deuses chefes das espécies em primeiro lugar. Depois deles vêm os deuses cuja essência tem um chefe: são estes deuses sensíveis e feitos à semelhança de sua dupla origem, os que, de um lado e outro do mundo sensível, produzem todos os seres, um por meio do outro, iluminando cada um dele; a obra que criou ou cria.
O Ousiarca do céu é Júpiter, através do céu dispensando a vida e todos os seres. O Ousiarca do sol é a luz; depois por mediação do círculo solar se difunde sobre nós o bem da luz. Os Trinta e Seis chamados Horóscopos, isto é, os astros que sempre se encontram fixos no mesmo lugar, têm como Ousiarca o chefe ou deus chamado Pantomorfos ou Omniforme, que impõe suas diversas formas aos diversos indivíduos de cada espécie. As chamadas Sete Esferas têm como Ousiarcas, isto é, como seus chefes, às chamadas Fortuna e Heimarmene, pelos quais as coisas se transformam segundo a lei da natureza a uma ordem absolutamente determinada, que permanece contudo diversificada por um momento perpétuo. O ar é o órgão, isto é, o instrumento de todos os deuses por mediação do qual se produzem as coisas; e o Ousiarca do ar é o segundo às coisas imortais as mortais e a estas suas semelhantes. Nestas condições, as coisas possuem entre si uma conexão através de mútuas relações em uma cadeia que abarca da mais baixa à mais alta. Porém, as coisas mortais estão ligadas às imortais, as sensíveis às que não são percebidas pelos sentidos. Enquanto o conjunto da criação obedece a este governador supremo que é o senhor, de forma que compõem não uma multiplicidade mas uma unidade. Pois, como todos os seres dependem do Um e são provenientes do Uno, ainda que vistos separadamente pareçam constituir uma infinidade em número, quando se os considera reunidos formam apenas uma unidade, ou melhor ainda, uma parelha, aquilo de que tudo procede e pelo que tudo é produzido, isto é, a matéria com que as coisas são feitas e a vontade de Deus cujo decreto as faz existir em sua diversidade.
20 - E qual é esta doutrina, ó Trismegistos?
- A seguinte, Asclépios. Deus, ou o Pai, ou o Senhor das coisas, ou qualquer nome que os humanos de uma maneira mais santa ou mais repleta de reverência o designem; nome que a necessidade em que nos vemos de nos comunicar uns aos outros faz com que consideremos sagrado; de forma que se consideramos a majestade de um Ser tão grande, nenhum destes nomes tem o poder de defini-lo com exatidão. Pois se o nome não é mais do que isto, um som que provém do choque de nosso alento com o ar, para declarar toda vontade ou pensamento que o ser humano tenha podido conceber em seu espírito a partir das impressões sensíveis, um nome cuja substância, composta de um pequeno número de sílabas está inteiramente delimitada e circunscrita a fim de fazer possível entre os humanos o intercâmbio indispensável entre o que fala e o que escuta, se o nome, digo, é mais que isto, a totalidade do nome de Deus inclui ao mesmo tempo a impressão sensível, o alento, o ar e tudo aquilo que existe nestas três coisas ou por seu intermédio ou como resultado das três: bem, não há nenhuma esperança de que o Criador da majestade do Todo, o pai e o senhor de todos os seres, possa ser designado por meio de um único nome, nem sequer composto de uma pluraridade de nomes; Deus não tem nome ou melhor ainda, possui todos, posto que é ao mesmo tempo Um e Todo, de modo que é preciso ou designar as coisas com seu nome ou então dar-lhe o nome das coisas; Deus, portanto, que é as coisas por si só, infinitamente repleto da fecundidade dos dois sexos, prenhe pela sua própria vontade, sempre, dá à luz e tudo que tenha planejado ou decidido procriar. A sua vontade é, inteiramente, bondade. E essa bondade que existe também em todos os seres saiu naturalmente da divindade de Deus, para que os seres sejam como são e como têm sido e para que todos os seres que tenham que existir na seqüência procurem, de maneira adequada, a faculdade de reproduzir-se. Seja-te, pois, desvelada nestes termos, ó Asclépios, a doutrina acerca das causas e o modo de produção dos seres.
21 - Dizes então, ó Trismegistos, que Deus possui os dois sexos?
- Sim, Asclépios, e não somente Deus, mas todos os seres animados e inanimados. Não é possível que nenhum dos seres que exista seja infecundo pois caso se retire a fecundidade de todos os seres que existem neste momento, as raças atuais não poderão durar para sempre. De minha parte declaro que também está na natureza dos seres o sentir e o engendrar e digo que o mundo possui em si mesmo a capacidade de engendrar e que conserva todas as raças que uma vez tenham vindo a ser. Porque um e outros sexos estão cheios de força procriadora e a união destes dois sexos ou melhor, sua unificação, que pode ser denominada corretamente Eros ou Vênus ou as duas coisas ao mesmo tempo, é algo incompreensível para o entendimento.
Grava pois em teu espírito, como uma verdade mais certa e evidente que nenhuma, que este grande soberano de toda a natureza, Deus, inventou para todos os seres e concedeu a todos este mistério de reprodução eterna, com tudo o que traz consigo de afeto, felicidade, alegria, desejo e amor, dom de Deus. E este seria o lugar de dizer quanta força tem esse mistério para prender-nos, se cada um de nós, examinando a si mesmo, não soubesse pelos seus sentimentos mais íntimos. Pois se consideras este momento supremo em que, graças a um roçar continuado, chegamos ao resultado que as duas naturezas derramam uma na outra sua semente, de que uma das duas se apopera avidamente para encerrá-la em si mesma, nesse ponto comprovas que, por uma fusão das duas naturezas, a mulher adquire o vigor do varão; o varão se relaxa ou se abandona em um langor feminino. Por isto o ato desse mistério, por muito doce e necessário que pareça, se realiza em segredo para que as zombarias do vulgo ignorante não fizessem corar à divindade, que se manifesta em uma e outra natureza nessa fusão dos sexos, particularmente quando se o expõe aos olhos dos ímpios.
22 Pois os homens piedosos não são numerosos: tão pouco numerosos que seria possível contá-los em todo universo. Bem, se na grande maioria persiste a malícia, é porque carece de sabedoria e conhecimento do conjunto das coisas. Pois é preciso ter compreendido o plano divino, de acordo com o qual foi constituído o universo, para menosprezar os vícios de tudo o que é matéria e remediá-los. Porém, quando a ignorância e a imperícia se alargam, todos esses vícios, adquirindo cada vez mais força, ferem a alma com pecados incuráveis; e a alma, infectada e corrompida por eles, se encontra como que inchada por venenos exceto naqueles que tenham encontrado o remédio soberano da ciência e do conhecimento.
lsto posto, ainda que não tivesse que servir a outros homens que não estes, que representam um número reduzido, vale a pena prosseguir e concluir o tema que estamos tratando: porque tão-somente ao ser humano a divindade dignou-se conceder o conhecimento a ciência que lhe pertencem. Escuta, pois.
Quando Deus, o Pai, e o Senhor, criou, depois dos deuses, os humanos, combinando neles em proporções iguais o elemento corruptível da natureza e o elemento divino, sucedeu que os vícios da matéria, uma vez mesclados aos corpos, se arraigaram nestes, bem como outros vícios procedentes dos alimentos e o alimento que nos vemos forçados a tomar como todo ser vivente, de onde se segue necessariamente que os desejos da concupiscência e todos os demais vícios da alma encontram lugar no coração humano. Enquanto que os deuses que foram formados da parte mais pura da natureza e não têm nenhuma necessidade da ajuda da razão e da ciência, embora a imortalidade e o vigor de uma juventude eterna lhes façam às vezes de sabedoria a ciência para salvaguardar e unidade de seu plano, como ciência a inteligência, a fim de que não ficassem desprovidos desses bens, Deus, por um decreto eterno, constituiu para eles e prescreveu-lhes em forma de lei e ordem da necessidade, enquanto distinguia o ser humano dentre todos os viventes e o reconhecia como seu pelo privilégio único da razão e da ciência, graças às quais a humanidade pode apartar e rechaçar para longe de si os vícios inerentes ao corpo e se dirigir à esperança da imortalidade e tender a ela. Em uma palavra, a fim de que o ser humano pudesse ser bom e capaz da imortalidade, Deus o compõs de duas naturezas, a divina e a mortal: e deste modo a vontade divina decretou que o ser humano fosse melhor constituído que os deuses, que foram conformados exclusivamente da natureza imortal que todo o resto dos mortais. Por isto, enquanto o ser humano unido aos deuses por um vínculo de parentesco, os adora piedosamente na santidade do espírito, os deuses por sua vez velam do alto, com um terno amor, sobre os assuntos humanos, tomando-os sob sua custódia.
23 Porém falo tão somente deste reduzido número que recebeu o dom de uma alma piedosa; dos maus mais vale nada dizer, pois temo que, pensando neles possa resultar maculada a sublime santidade deste raciocínio.
E como foi anunciado o tema do parentesco e o consórcio que liga homens e deuses, convém, Asclépios, que conheças o poder e a força do homem. Do mesmo modo que o Senhor ou o Pai ou, para dar-lhe seu nome mais alto, Deus, é o criador dos deuses, do céu, também o ser humano é o autor dos deuses que residem nos templos e que encontram satisfação na vizinhança dos humanos: não somente recebe a luz, como a dá por sua vez, não somente avança para Deus, mas também cria deuses. Sentes admiração, ó Asclépios, ou to sentes sem fé, como a maioria?
- Sinto-me confuso, ó Trismegistos, porém me rendo gostosamente a tuas proposições e considero o ser humano infinitamente ditoso, pois conseguiu uma felicidade de tal índole.
- Certamente, merece que se o admire, ele, o maior de todos os seres. É uma crença universal que a raça dos deuses saiu da parte mais pura da natureza, e que seus signos visíveis não são, por assim dizer, mais que cabeças no lugar de corpos inteiros. Por outro lado, as imagens dos deuces que o ser humano modela foram formadas das duas naturezas, da divina que é a mais pura e muito mais divina e da que está abaixo do homem, isto é, da matéria que serviu para fabricá-las, ademais, suas figuras não se limitam somente à cabeça, mas possui um corpo inteiro com todos os membros. Assim a humanidade que sempre recorda sua natureza e sua origem, avança até nisto a imitação da divindade e, assim como o Pai e o Senhor dotou aos deuses de eternidade para que fossem semelhantes a Ele, da mesma maneira o ser humano modela os seus próprios deuses à semelhança de seu rosto.
24 - Referes-te, ó Trismegistos, às estátuas?
- Sim, às estátuas, Asclépios. Vês como careces de fé? Trata-se de estátuas dotadas de uma alma, conscientes, cheias de sopro vital, e que realizam um número incalculável de prodígios; estátuas que conhecem o futuro e o predizem pelas sortes, a inspiração profética, os sonhos e muitos outros métodos, que enviam aos homens as enfermidades e as curam, que concedem, segundo nossos méritos, a dor ou a fortuna.
Desconheces então, ó Asclépios, que o Egito é a cópia do céu ou, para melhor dizer, o lugar em que se transferem e projetam cá embaixo todas as operações que dirigem e põem em obra as forças celestes? Mais ainda, tem que se dizer toda verdade, nossa terra é o templo do mundo inteiro.
E, no entanto, como aos sábios convém conhecer de antemão às coisas futuras, há uma que é preciso que conheças. Virá um tempo em que parecerá que os egípcios honraram em vão a seus deuses, na piedade de seu coração, através de um culto assíduo: toda sua santa adoração fracassará por ineficaz, será privada de seu fruto. Os deuses abandonando a terra, volver-se-ão para o céu, abandonarão o Egito; este país que foi em outro tempo o domicílio das liturgias santas, viúvo agora de seus deuses, não gozará mais de sua presença. Estrangeiros virão a habitar este país, esta terra, e não ela somente, se deixará de prestar atenção às observâncias, mas, coisa ainda mais penosa, mandar-se-á, por meio de presumidas leis, sob castigos prescritos, abster-se de toda prática religiosa, de todo ato de piedade ou de culto para com os deuces. Então, esta terra santíssima, pátria dos santuários dos templos, permanecerá totalmente coberta de sepulcros e de mortos. Oh! Egito, Egito! de teus cultos restarão apenas mitos e nem sequer teus filhos, mais tarde, crerão neles, nada sobreviverá, a não ser as palavras gravadas sobre as pedras que contam tuas piedosas façanhas. O cita, ou o hindu, ou qualquer outro semelhante a eles, isto é, um vizinho bárbaro se estabelecerá no Egito. Porque eis que daqui a divindade sobe aos céus de novo, os homens abandonados, morrerão todos e então, sem deus e sem humano, o Egito não será mais que um deserto. Dirijo-me a ti, rio santíssimo, e a ti predigo as coisas do futuro: torrentes de sangue to encherão até as margens e transbordarás, e não somente tuas águas divinas serão manchadas por este sangue, mas também este fará com que saiam de seu leito e haverá muito mais mortos que vivos; enquanto que aquele que haja sobrevivido só será reconhecido como egípcio pela sua língua: na sua forma de agir parecerá um ser humano de outra raça.
25 Por que chorar, ó Asclépios? O mesmo Egito se deixará arrastar e muito mais que isto, e a algo muito pior: será maculado com crimes muito mais graves. Ele, noutro tempo o santo, que tanto amava aos deuses, único país da terra em que os deuses haviam assentado moradia para corresponder à sua devoção, ele, que ensinava aos homens e santidade e a piedade, dará exemplo da mais atroz crueldade. Nessa hora, cansados de viver, os humanos não olharão o mundo como objeto de sua admiração e reverência. Este Todo, que é uma coisa boa, a melhor que se pode ver no passado, no presente e no futuro, estará em perigo de perecer, os humanos o considerarão como um peso duro e, por ele mesmo, se menosprezará e não se amará mais a este conjunto do universo, obra incomparável de Deus, construção gloriosa, criação, toda ela boa, feita de uma infinita diversidade de formas, instrumento da vontade de Deus que, sem ciúme, prodigaliza seus favores em toda sua obra, onde se reúne em um mesmo todo, numa harmoniosa disparidade, tudo o que pode oferecer-se à vista que seja digno de reverência, louvor e amor. Porque as trevas serão preferidas à luz, se achará mais útil morrer que viver, ninguém mais levantará seus olhos para o céu; o ser humano piedoso será olhado como um louco, o ímpio como um sábio; o louco frenético será olhado como um valente, o pior criminoso como um ser humano de bem. A alma e todas as crenças que a ela se referem, segundo as quais a alma é imortal por natureza, ou que haverá de obter a imortalidade, conforme ensinei, serão apenas motivo de riso, mais ainda serão vistas como pura vanidade. Inclusive, creia-me, será um crime capital, segundo os textos da lei, o estar dedicado à religião do espírito. Será criado um novo direito, novas leis. Nada santo, nada piedoso, digno do céu e dos deuses que o habitam se fará ouvir jamais nem se achará fé em parte alguma da alma.
Produz-se uma dolorosa separação entre homens e deuses; restam apenas os anjos nocivos que se mesclam aos humanos e os constrangem pela violência, desventurados, e todos os excessos de uma audácia criminosa, comprometendo-os em guerras, piratarias, más ações e em tudo o que é contrário à natureza da alma. A terra perderá então seu equilíbrio, o mar deixará de ser navegável, o céu não estará manchado de estrelas, os astros deterão sua marcha pelo céu; toda voz divina será forçada ao silêncio e se calará; os frutos da terra apodrecerão, o solo deixará de ser fértil, o próprio ar se intumescerá num lúgubre torpor.
26 Isto, pois, será a velhice do mundo: irreligião, desordem, irracional confusão de todos os bens. Quando essas coisas tiverem sucedido, ó Asclépios, estão o Senhor, e o Pai, o Deus primeiro em potência e demiurgo do deus uno, depois de haver considerado estes costumes e estes crimes voluntários, oferecendo resistência com sua vontade, que é a bondade divina, aos vícios e à corrupção universal, e corrigindo o erro, aniquilará toda a malícia, apagando-a através de um dilúvio, consumindo-a através do fogo, destruindo-a através de enfermidades pestilenciais estendidas a diversos lugares; logo conduzirá o mundo à sua beleza primeva, para que este mesmo mundo pareça novamente digno de reverência e admiração e para que também Deus, criador e restaurador de uma obra tão grande, seja glorificado pelos homens que vivam, então, com contínuos hinos de louvor e bênção. Aqui se dará na realidade o nascimento do mundo: uma renovação das coisas boas, uma restauração santa e soleníssima da própria natureza, imposta pela força com o correr do tempo (porém por vontade divina) que é aquilo que foi sem começo nem fim. Pois a vontade de Deus não teve começo, é sempre a mesma e o que é hoje segue sendo eternamente. Pois o conselho da vontade de Deus nada mais é que sua essência.
- Este conselho é, pois, o Bem supremo, oh! Trismegistos?
- É o conselho, Asclépios, o que dá nascimento à vontade, do mesmo modo que esta por sua vez faz nascer o próprio ato do querer. Pois o que possui as coisas nada quer ao acaso, mas quer tudo o que possui. Agora bem, quer tudo o que é bom, e é tudo o que possui. Tudo o que propõe e quer, é, pois, bom. Assim é Deus: e o mundo é sua imagem, obra de um Deus bom, e portanto, bom.
27 - Bom, Tismegistos?
Sim, bom, Asclépios, e vou demonstrar-te. Da mesma maneira que Deus dispensa e distribui a todos os indivíduos e gêneros que existem no mundo seus benefícios, isto é, o intelecto, a alma e a vida, também o mundo produz e dá as coisas que os mortais consideram boas, isto é, a sucessão dos nascimentos no seu tempo, a formação, crescimento a maturação dos frutos da terra e outros bens semelhantes.
Estabelecido na maior altitude do céu supremo, Deus está em todas as partes e passeia seu olhar sobre as coisas - pois existe um lugar além do próprio céu, lugar sem estrelas, muito afastado das coisas corporais. O que dispensa a vida ao que chamamos de Júpiter ocupa o lugar intermediário entre o céu e a terra. A terra e o mar estão sob o poder de Júpiter Plutônio: é o que nutre a todos os viventes mortais e aos que dão fruto. Assim, graças às virtudes ativas de todos estes deuses os produtos do solo, as árvores e a própria terra devem subsistir. Porém existem ainda outros deuses cujas virtudes ativas e cujas operações vão distribuir-se através de tudo o que existe. Esses deuses cujo domínio se exerce sobre a terra serão restaurados qualquer dia e instalados numa cidade no limite extremo do Egito, uma cidade que será fundada do lado do sol poente e à qual afluirão, por terra e por mar, as raças dos mortais.
- Diga-me, todavia, ó Trismegistos, onde se encontram no momento estes deuses da terra? - Instalaram-se numa magnífica cidade, sobre a montanha da Líbia. Porém isto é o suficiente quanto a este tema.
Precisa-se tratar agora do mortal e do imortal. Porque a espera e o temor da morte são um suplício para a maior parte dos homens por ignorarem a verdadeira doutrina.
A morte é o resultado da dissolução do corpo gasto pelo trabalho, uma vez cumprido o número de anos durante o qual os membros do corpo se mantém ajustados para perfazer um todo único, instrumento bem disposto para as funções da vida: o corpo morre quando deixa de ter força para suportar as cargas da vida humana. A morte é isto: dissolução do corpo a desaparição da sensibilidade corporal; e é desnecessário inquietar-se por isso. Porém existe um outro motivo de inquietude, este necessário, que os homens menosprezam porque o ignoram ou porque não crêem nele.
- Que é isto, ó Trismegistos, que os homens ignoram ou cuja possibilidade põem em dúvida?
28 - Escuta pois, Asclépios. Assim que a alma tenha se retirado do corpo, passará ao domínio do Daimon supremo que a submeterá a juízo a fim de avaliar seus méritos. Se uma vez examinada a fundo este comprova que ela sempre se mostrou piedosa e justa, a autoriza a estabelecer-se na morada que lhe corresponde; contrariamente, se a vê manchada das impurezas do pecado e suja pelos vícios, precipita-a às profundezas, abandonando-a às tormentas e aos turbilhões que os ares enfrentam sem cessar, e também o fogo e a água, a fim de que por castigo eterno, seja sacudida e arrastada em sentidos contrários pelas vagas sucessivas da matéria entre a terra e o céu: mais ainda, a própria eternidade da alma não faz mais que daná-la, pois se encontra condenada a um suplício eterno em virtude de uma sentença que não tem fim. Saiba, pois, que temos de temer, assustarmo-nos, e evitar chegar a ser presas de uma tal sorte: pois os incrédulos, depois de terem pecado, ver-se-ão forçados a crer, não pelas palavras, mas pelos fatos, não pelas ameaças, mas pelo próprio sofrimento do castigo.
- Então, ó Trismegistos, não é apenas a lei humana que castiga os pecados dos humanos?
- Em primeiro lugar, Asclépios, tudo o que é terrestre é mortal; e também o são os seres que estão dotados de vida segundo a condição corpórea e que por isso mesmo deixam de viver nessa condição. Todos esses seres, pois, ao estarem submetidos a castigos proporcionados pelo que sua vida e suas faltas merecem, são castigados depois da morte, com penas tanto mais severas quanto suas faltas, durante a vida puderam ser mantidas ocultas. Porque a divindade conhece nossas ações, de forma que os castigos corresponderão exatamente à qualidade das faltas.
29 - Quais são os que merecem as maiores penas, ó Trismegistos?
- São aqueles que, tendo sido condenados pelas leis humanas, perecem de morte violenta, de forma que parecem ter entregado a vida não como uma dívida paga à natureza, mas o preço de seus crimes. O ser humano justo, contrariamente, encontra sua defesa no culto de Deus e na piedade mais elevada: porque Deus protege tais homens contra toda espécie de mal. Efetivamente, o Pai ou Senhor das coisas, aquele que por si só é tudo, se desvela com prazer a todos. Não se dá a conhecer como algo situado num lugar, nem dotado de uma determinada qualidade ou magnitude, apenas ilumina o ser humano com esse conhecimento que pertence apenas ao intelecto; e então o ser humano, depois de ter expulsado da alma as trevas do erro e haver adquirido a luz da verdade, se une com todo seu intelecto à inteligência divina, cujo amor o libertou desta parte de sua natureza pela qual é mortal e o fez conceber uma firme esperança na imortalidade futura. Esta a distância que haverá entre bons e maus. Todo ser humano bom é iluminado pela piedade, pela religião, sabedoria, o culto e a adoração de Deus; penetra, como se o fizesse com os olhos, a verdadeira razão das coisas, firmemente seguro de sua fé, supera aos demais humanos tanto quanto o sol supera em luminosidade aos outros astros do céu. Ademais, o mesmo sol, se ilumina o resto das estrelas não é tanto pela potência de sua luz como pela sua divindade e santidade. E é a ele que em verdade deves considerar como o segundo Deus que governa as coisas, que difunde sua luz sobre os viventes da terra, os que possuem uma alma e os que não a têm.
Bem, se o mundo é um vivente que sempre está em vida, no passado, no presente, no futuro, nada no mundo pode morrer. Como cada uma das partes do mundo está sempre em vida, tal qual é, segundo seu próprio ser, como, por outro lado, se encontra num mundo que é sempre uno e que é vivente a um vivente sempre em vida, não permanece no mundo um lugar para a morte. É preciso portanto que o mundo esteja repleto, infinitamente, de vida e de eternidade, posto que deve sempre, necessariamente, viver. O sol, por conseguinte, posto que o mundo é eterno, governa também eternamente as coisas capazes de viver, isto é, a vitalidade inteira, que distribui através de uma contínua doação. - Deus governa, pois, eternamente as coisas viventes, isto é, capazes de viver, que existem no mundo e dispensa eternamente a vida. Bem dispensou-a, em verdade, de uma vez por todas, a vida é conferida às coisas que são capazes de viver por uma lei eterna, da maneira que vou dizer.
30 O mundo se move na própria vida da eternidade, e seu lugar está nesta eternidade própria da vida. Por esta razão o mundo nunca encontrará repouso nem será jamais destruído, posto que esta eternidade de vida o protege como com um muro fortificado e, por assim dizer, o encerra. Este mundo, mesmo, por seu lado, dispensa a vida e todos os seres que contém, e é o locus de todos os seres submetidos ao governo divino sob o sol. O movimento do mundo é resultado de uma operação dupla: por úm lado o mundo é vivificado a partir do exterior pela eternidade, por outro lado vivifica a todos os seres que contém, diversificando as coisas segundo números e tempo estabelecidos e determinados graças à ação do sol e ao curso dos astros, sendo prescrito o ciclo regular do tempo por uma lei divina. O tempo da terra se dá a conhecer pelo estado da atmosfera, pela sucessão das estações quentes e frias, e o tempo do céu pelo retorno dos astros à sua posição primeira no transcurso de sua revolução periódica. O mundo é o receptáculo do tempo e o curso e o movimento do tempo são os nutridores da vida do mundo. O tempo se mantém segundo uma norma fixa e esta ordem do tempo é o que produz a renovação das coisas no mundo, mediante o retorno alternado das estações. E como as coisas estão submetidas a estas leis não há nada estável, nada fixo, nada imóvel no que vem a ser, no céu ou sobre a terra. Somente Deus possui estas qualidades e com razão: porque é em si, é por si, está concentrado inteiramente em si mesmo, pleno e perfeito; é por si mesmo a estabilidade imóvel, e nenhuma influência procedente do exterior pode movê-lo para fora de seu lugar, porque as coisas em sua totalidade estão nele e ele está nas coisas, apenas ele, a não ser que alguém se atreva a dizer que ele tem um movimento na eternidade, porém, pelo contrário, é melhor dizer que a eternidade é também imóvel já que o movimento de todos os tempos volve a ela e nela nasce o movimento de todos os tempos.
31 Deus, pois, sempre esteve em repouso e bem como a eternidade, da mesma forma que Deus, permanece imóvel encerrado dentro de si, antes de nascer, este mundo que com razão chamamos mundo sensível. Deste Deus, o mundo sensível foi feito imagem, posto que o mundo imita a eternidade. Pois o tempo, por muito que sempre esteja em movimento possui a força e a natureza da estabilidade sob uma modalidade que lhe é própria, em virtude dessa própria necessidade que o força voltar a seu princípio. Por isto, ainda que a eternidade seja estável, imóvel e fixa, supondo que o curso do tempo, que é móvel, sempre é devolvido à eternidade e supondo que esse movimento segundo a própria lei do tempo, é uma revolução cíclica, segue-se que a própria eternidade, que, tomada independentemente, e imóvel, parece por sua vez estar em movimento devido ao tempo, pois ela mesma entra no tempo, neste tempo em que encontra lugar todo movimento. De onde se deduz que a estabilidade da eternidade comporta movimento e a mobilidade do tempo se torna estável graças à imutabilidade da lei que rege seu curso. Pois o movimento de sua estabilidade é imóvel devido à sua magnitude: porque a lei da imensidade implica a imobilidade. Assim, e este ser que é tal, que escapa ao domínio dos sentidos, não tem limites, ninguém pode abarcá-to ou medi-lo; não pode ser sustentado, nem levado, nem seguido ou perquirido; onde está, para onde vem, como se conduz, de que natureza é: tudo isto nos édesconhecido; move-se na sua estabilidade soberana e sua estabilidade move-se nele, seja esta Deus, ou a eternidade, ou ambos, ou um na outra, ou ambos em um e na outra. Por esta razão a eternidade não conhece os limites do tempo: por outro lado, ainda que seja possível delimitá-lo, seja através do número, ou pela mudança das estações ou pelo retorno periódico dos astros em sua revolução, o tempo é eterno. Assim os vemos a ambos, um e outro, igualmente infinitos, analogamente eternos: pois, sendo a estabilidade fixa a fim de poder servir de base a todos movimentos dos móveis, por esta mesma solidez ocupa com razão o primeiro posto.
32 Assim, as causas primeiras de tudo que existe são Deus e a eternidade. O mundo, supondo-se que seja móvel, não ocupa o primeiro lugar pois, nele, a mobilidade supera a estabilidade, enquanto possui por lei própria de seu movimento eterno, uma fixidez inalterável.
- O intelecto total que se assemelha à divindade, imóvel por si mesma, move-se em sua estabilidade: é santo, incorruptível, eterno e qualquer outra coisa melhor que ainda possa ser dita, se é que existe algum atributo melhor, posto que é a eternidade do Deus supremo a qual subsiste na verdade absoluta, infinitamente cheio de todas as formas sensíveis e da ordem universal, subsistindo, por assim dizer, com Deus. O intelecto do mundo, por sua vez, é o receptáculo de todas formas sensíveis e de todas as ordens particulares. Finalmente, o intelecto humano depende do poder de retenção próprio da memória, graças ao qual conserva a lembrança de suas experiências passadas. A divindade do intelecto se detém, em sua descida, no animal humano: pois o Deus supremo não quis que o intelecto divino fosse mesclar-se com todas as espécies viventes, por medo de ter que lamentar-se desta mescla com os viventes inferiores. O conhecimento que se pode adquirir do intelecto humano, de seu caráter, de seu poder, consiste inteiramente na lembrança de acontecimentos passados: pois graças a esta tenacidade da memória o ser humano foi capaz de governar também ele, a terra. A inteligência da Natureza e o caráter do intelecto do mundo podem ser vistos a fundo mediante a observação de todas formas sensiveis que existem no mundo. O intelecto da eternidade que está em segundo lugar, se dá a conhecer e seu caráter pode ser discernido pela observação do mundo sensível. Porém o conhecimento que se pode obter do caráter do intelecto do Deus supremo e o próprio caráter desse intelecto são a verdade completamente pura e desta não se pode discernir no mundo, ainda que de modo confuso, nenhuma sombra. Pois onde nada se dá a conhecer que sob a medida do tempo, há uma mentira, onde há começo no tempo, há erro. Vês, pois, Asclépios, como instalados em tão profunda profundidade, tratamos temas tão elevados e a que sublimidades desejamos chegar. Porém é a ti, Deus Altíssimo, a quem dou graças, a ti que me iluminastes com a luz que consiste na visão da divindade. Quanto a vós, ó Tat, Asclépios e Hammon; guardai estes mistérios divinos no segredo de vossos corações, cobrindo-o de silêncio e mantendo-os ocultos.
Existe esta diferença entre a inteligência humana e o intelecto do mundo, que nossa inteligência chega à força de aplicação, a captar e a discernir o caráter do intelecto do mundo, enquanto que o intelecto do mundo se eleva ao conhecimento da eternidade e dos deuses que estão, acima dele. Desta maneira indireta se dá a conhecer a nós, os homens, o poder ver, como através da névoa, as coisas do céu, tanto quanto o permite a condição do espírito humano. Indubitavelmente, quando se trata de contemplar objetos tão altos, nossa capacidade de visão possui limites bem estreitos: porém uma vez tenha visto, a felicidade da alma que conhece é imensa.
33 - Acerca do vazio ao qual a maior parte atribui tanta importância, eis aqui minha opinão: não há vazio de classe alguma, não pode ter existido e não existirá jamais. Porque todas as partes do mundo estão completamente cheias, de modo que o próprio mundo está cheio e totalmente acabado graças a corpos que diferem em qualidade e forma e que possuem cada um sua figura e magnitude próprias: um maior, outro menor, um mais denso, outro menos denso. Desses corpos, os que são mais densos são visíveis ao primeiro golpe de vista, bem como os que são maiores; os corpos menores ou mais tênues são apenas visíveis ou não o são em absoluto e só se conhece a sua existência por meio do tato. De onde decorre freqüentemente não sejam tomados como corpos mas como espaços vazios, o que é impossível. Pois, da mesma maneira que o que se chama espaço fora do mundo, se é que realmente existe algo assim (o que não creio), deve estar, em minha opinião, cheio de seres inteligíveis, isto é, semelhantes à divindade deste espaço, também este mundo que se chama sensível está absolutamente repleto de corpos e de viventes em relação com sua natureza e qualidade; porém as verdadeiras formas destes corpos nem sempre nos são evidentes: vemos algumas maiores do que são efetivamente, as outras realmente muito pequenas, de modo que pela extrema distância que nos separa delas ou pela debilidade de nossa vista nos parecem assim, ou ainda, seu excessivamente diminuto tamanho induz a maioria a negar de forma absoluta a existência delas. Refiro-me neste momento aos daimons que, estou seguro, habitam conosco e aos heróis, que moram, em minha opinião, entre a parte mais pura do ar, acima de nós e esses lugares em que não se acham nem bruma nem nuvens e cuja paz não é perturbada pelo movimento de nenhum corpo celeste. Guarda-to pois, ó Asclépios, de chamar "vazio" a algum objeto, a menos que digas também, de que está vazio o que chamas vazio, como "vazio de" fogo, ou de água, ou de qualquer outra coisa semelhante, pois ainda quando chega a ocasião de ver um objeto que possa estar vazio destas coisas, por muito pequeno ou grande que seja o que parece vazio, não é possível todavia, que esteja vazio de ar.
34 Outro tanto tem que ser dito de `locus': esta palavra absolutamente desprovida de sentido, se a tomarmos absolutamente. Pois não se vê o lugar (locus) e o que é, a menos que se observe de que é o lugar. Abandonando-se o elemento capital, a significação da palavra fica incompleta. Por isto diremos, com razão: o lugar da água, o lugar do fogo, ou de outras coisas semelhantes. Como é impossível que haja algo vazio, também não se pode reconhecer o que seja o lugar tomado por si só. Pois se supõe um lugar sem o objeto de que é lugar, este lugar parecerá vazio: bem, segundo digo, não existe lugar vazio no mundo. Se nada está vazio, não se pode ver que coisa poderá ser o lugar em si, a não ser que se lhe acrescente, como ao corpo humano, as determinações de comprimento, largura e altura.
- Nestas condições, ó Asclépios e vós que estais presente, sabei que o mundo inteligível, isto é, o que não é percebido a não ser pelos olhos da inteligência é incorpóreo e que nada corporal pode mesclar-se a sua natureza, nada que possa ser definido pela qualidade, pela quantidade ou pelo número: por que nele não há nada semelhante a isto.
Este mundo dito sensível é o receptáculo de todas qualidades ou substâncias das formas sensíveis e todo esse conjunto não pode ter vida sem Deus. Porque Deus é as coisas, vem de si e dependem de sua vontade. Este Todo é bom, belo, sábio, inimitável, não é perceptível e inteligível a não ser para si mesmo e sem ele nada foi, nada é, nada será. Pois tudo vem dele, tudo está nele, tudo é por ele, e as qualidades de todas classes e de toda figura, e as magnitudes enormes, e as dimensões que superam, e toda medida e as formas de toda espécie, compreende estas coisas, Asclépios, e darás graças a Deus. Porém se chegas a alcançar conhecimento acerca deste Todo compreenderás que em verdade o próprio mundo sensível, com tudo o que contém, está rodeado como por uma vestimenta pelo mundo superior.
35 Em cada gênero de viventes, Asclépios, seja qual for o vivente, mortal ou imortal, racional ou irracional, dotado de alma ou não, cada indivíduo, segundo o gênero a que pertence, leva a marca de seu gênero. E ainda que todo gênero de seres viventes possua inteiramente a forma própria de seu gênero, nem por isso deixam de diferir entre si os indivíduos dentro da mesma forma: por exemplo, ainda que o gênero humano não possua mais que uma forma comum, de modo e se reconhecer e um ser humano com o simples olhar, todavia, os indivíduos diferem entre si dentro da mesma forma. Pois o tipo ideal que vem de Deus é incorpóréo e também tudo o que é apreendido pelo espírito. Assim, supondo-se que os dois elementos de que estão constituídas as formas são corpos e não corpos, não é possível que uma forma individual nasça inteiramente semelhante a outra em diferentes pontos do tempo e em distintas latitudes, pelo contrário, estas formas mudam tantas vezes quantos momentos tem uma hora durante a revolução do círculo em cujo interior reside o grande deus que chamamos Omniforme. Assim, o tipo genérico permanece imutável por mais que engendre fora de si tantas cópias de si mesmo, em tão grande número e tão diversas, como momentos suporta a revolução do mundo, pois o mundo muda no curso da sua revolução, enquanto que o tipo não muda e não está submetido à revolução. Assim, portanto, as formas de cada gênero permanecem imutáveis apesar de implicar diferenças do mesmo tipo que lhes é próprio.
36 - O mundo muda também de aparência, ó Trismegistos?
- Já o vês, Asclépios, estas indicações que acabo de dar é como se as tivesse dado a uma pessoa que dorme. Que é o mundo e de que se compõe senão das coisas que vieram a ser? Tua pergunta se refere ao céu, à terra e aos elementos, não é? Pois bem, que existe que mais continuamente mude de aparência? O céu está frio ou quente, úmido ou seco, claro ou nublado - todas estas mudanças se dão num mesmo tipo uniforme. A terra passa continuamente por múltiplas mudanças de aspecto, quando está gerando seus meses, quando nutre o que fez nascer, quando varia e diversifica as qualidades e tamanhos de seus produtos, os momentos de parada ou avanço de seu crescimento, e antes de tudo, as qualidades, odores, sabores e formas das árvores, das flores e dos frutos. O fogo conhece muitas transformações divinas. As figuras do sol e da lua se revestem também de toda classe de aspectos: parecem-se de certo modo a nossos espelhos que devolvem as cópias das imagens com um brilho que rivaliza com a realidade.
37 Porém já falamos o suficiente acerca deste tema.
- Voltemos ao ser humano e à razão, dom divino pelo qual o ser humano recebeu a designação de animal racional. O que já dissemos do ser humano já é maravilhoso, porém essas maravilhas não valem a seguinte: o que move ou impõe sobretudo a admiração é que o ser humano foi capaz de descobrir a natureza dos deuses e de produzi-la Nossos primeiros antepassados depois de terem se equivocado seriamente a respeito da verdadeira doutrina acerca dos deuses - não acreditavam, nem se preocupavam com o culto ou religião, de uma forma absoluta, inventaram a arte de fazer deuses, logo, assim que os fizeram, vincularam a eles uma virtude adequada, que inferiam da natureza material, e misturando esta virtude com a substância das estátuas, dado que não podiam criar almas propriamente ditas, depois de terem invocado almas de daimons, as introduziram em seus ídolos por meio de rituais santos e divinos, de modo que estes ídolos tiveram o poder de fazer o bem e o mal.
Este é o caso, ó Asclépios, de teu avô, o primeiro inventor da arte de curar, e quem se dedicou sobre o monte da Líbia, perto do rio dos crocodilos, um templo em que jaz o que nele foi o ser humano terrestre, isto é, o corpo - pois o resto, ou melhor, o todo dele, se é verdade que o todo do ser humano consiste no que possui o sentimento da vida, regressou, feliz, ao céu - e que, todavia, na atualidade, em virtude de seu poder divino dá aos homens, em suas enfermidades, todas as classes de remédios que lhe dava já em outro tempo por meio do exercício de sua arte de médico. Assim também, meu antepassado Hermes, cujo nome levo, não é, por acaso, verdade que reside na cidade natal chamada pelo seu nome, de onde concede ajuda e salvação a todos mortais que, de todas as partes procuram-no? Isis, finalmente, a esposa de Osíris, quantos benefícios concede, bem o sabemos, quando está propícia e quantos homens dana quando está irritada! Pois todos os deuses terrestres e materiais encolerizam-se facilmente, pois os homens compuseram-nos de uma e outra natureza. Eis portanto a razão de os egípcios reconhecerem oficialmente a estes animais sagrados que vemos e que adorem em cada cidade as almas daqueles que foram deificados em vida, até o ponto de existirem cidades que levam seus nomes e vivem sob suas leis. E como os animais adorados numa cidade não são reconhecidos em outra, as cidades do Egito vivem provocando, umas às outras, guerras.
38 - E de que ordem é a qualidade destes deuses que se chamam terrestres, ó Trismegistos?
- Resulta, Asclépios, de uma composição de ervas, pedras e perfumes que contêm em si mesmos uma virtude oculta de eficácia divina. E se alguém busca a maneira de agradá-los através de numerosos sacrifícios, hinos, cantos de louvor, concertos de som dulcíssimos que recordem a harmonia celestial, é para que este elemento celestial que foi introduzido no ídolo por meio da prática repetida de ritos celestiais possa suportar alegremente esta larga permanência entre os humanos. Esta é a maneira pela qual o ser humano fabrica deuses.
- Porém, não creias, Asclépios, que os deuses terrestres exercem sua influência ao acaso. Entre os deuses celestes que habitam nas alturas do céu, cada um possui e conserva o lugar que lhe foi destinado por sua vez, nossos deuses terrestres oferecem sua ajuda ao ser humano como por um parentesco, velando sobre os detalhes das coisas, anunciando o futuro por meio das sortes ou adivinhações, provendo a certas necessidades, e por meio disso nos assistem cada um à sua maneira.
39 - Mas então, ó Trismegistos, que parte do plano divino é administrada por Heimarmene, isto é, o destino? Por acaso não possuem os deuses celestiais todo o governo da universalidade das coisas e os deuses terrestres a administração de todos seus detalhes?
- O que chamamos Heimarmene, Asclépios, é esta necessidade que domina o curso total dos acontecimentos, ligando-os uns aos outros por meio de uma cadeia contínua. É, pois, o bem e causa que produz as coisas, ou o Deus supremo, ou a ordem universal das coisas celestiais e terrestres fixadas por leis divinas. Assim, esta Heimarmene e a Necessidade estão inseparavelmente unidas entre si por uma espécie de aglutinante sólido: e Heimarmene se acha em primeiro lugar, gerando o começo das coisas, enquanto que a Necessidade faz com que cheguem, por força, e seu efeito, estas coisas que começaram a ser graças à ação da Heimarmene. Uma e outra tem como conseqüência a Ordem, isto é, a contextura e a sucessão temporal de tudo o que deve realizar-se. Nada com efeito escapa às disposições da Ordem, e esta bela ordenação se cumpre nas coisas, pois o próprio mundo segue a Ordem em seu movimento; mais ainda, não se mantém em sua totalidade se não receber o concurso da Ordem.
- 40 Portanto, estes três princípios, e Heimarmene, a Necessidade e a Ordem, ocupam o mais alto grau nas criações da vontade divina, que governa o mundo por meio de sua lei segundo seus divinos desígnios. Por isto Deus deixou-lhes toda a vontade de obrar ou não obrar. Sem que nunca sejam turbados pela cólera, sem que o favoritismo os persuada, obedecem à coação da lei eterna que não é outra que a própria eternidade, inevitável, imóvel, indissolúvel. Em primeiro lugar, pois, está a Heimarmene que, tendo deitado, por assim dizer, a semente, faz que sc produza, uma após as outras, toda série de coisas futuras; segue-se a Necessidade, que é a força que obriga as coisas a chegar a seu término efetivo; e a terceira é a Ordem, a qual mantém a conexão de todos os acontecimentos que foram determinados pela Heimarmene a Necessidade. É, pois, a eternidade, que não tem começo nem fim, e que determina na lei imutável de seu curso, realiza sua revolução por meio de um movimento perpétuo, que nasce incessantemente e deve morrer em alguma de suas partes, de forma que, graças à mudança dos instantes, e parte que nela tenha morrido é a mesma em que renasce: tal é com efeito o movimento circular, princípio de rotação, que tudo nele está tão bem ligado que já não se sabe onde começa a rotação, se é que começa, porque os pontos parecem preceder-se é seguir-se. Todavia, há no mundo acidente e acaso, mesclados como estão e tudo o que procede da matéria.
- Falei de cada uma das coisas, na medida que pude segundo minhas humanas forças e na medida que a divindade o quis e permitiu. Resta-nos apenas bendizer a Deus em nossas preces, e voltar ao cuidado do corpo: nossas almas tiveram, se podemos assim falar, sua plena ração no decorrer desta conversação acerca das coisas divinas.
41 Tendo saído então, do fundo do santuário, puseram-se a adorar a Deus, olhando para o Sul - pois quando alguém quer dirigir-se a Deus ao pôr do sol é para ali que deve olhar, do mesmo modo que ao nascer do sol deve olhar para o Leste e começavam já a pronunciar a fórmula quando Asclépios disse em voz baixa:
- Oh! Tat! Queres que proponhamos a teu pai que faça acompanhar nossas preces com incenso a perfumes?
Porém Trismegistos ouviu-o e muito comovido o atalhou:
- Silêncio, silêncio, Asclépios! É uma espécie de sacrilégio quando se faz oração a Deus queimar incenso e tudo o mais. Pois nada falta a ele que é as coisas e em quem são as coisas. De nossa parte, pois, adoremo-te por meio de ações de graças: este é, em verdade, o mais belo incenso que se pode oferecer a Deus, a ação de graças dos mortais.
- Damos-te graças, Altíssimo, que ultrapassas infinitamente as coisas, pois por teu favor obtivemos esta luz tão grande que permite conhecer-te, Nome santo e digno de reverência, Nome único pelo qual Deus somente deve ser bendito segundo a religião de nossos maiores, posto que dignas outorgar a todos os seres teu afeto paternal, teus cuidados solícitos, teu amor e tudo aquilo que pode existir de virtude benfeitora mais doce ainda, fazendo-nos dom do intelecto, da razão, do conhecimento: do intelecto, para que possamos conhecer-te; e da razão, para que, por meio de nossas instituições, alcancemos o fim de nossas investigações; do conhecimento, para que conhecendo-te, gozemos. Regozijamo-nos, pois, salvos por teu poder, de que te hajas manifestado, a nós, inteiramente, regozijamo-nos de que, ainda encontrando-nos nesta carne tenhas to dignado consagrar-nos à eternidade. O único meio que o ser humano possui de te dar graças e conhecer tua majestade. Nós te conhecemos, a ti e a esta luz imensa que somente o espírito capta; o compreendemos, oh! verdadeira vida da vida, o seio que porta tudo o que vem a ser! Conhecemos a ti, permanência eterna de toda natureza infinitamente repleta de tua obra procriadora. Nesta prece, em que adoramos o bem de tua bondade, pedimos apenas uma coisa: fazei com que nos conservemos perseverantes no amor de teu conhecimento e que não nos afastemos nunca deste gênero de vida.
Com estes desejos, fomos ceiar, uma ceia pura, que não foi manchada por nenhum alimento que tivesse tido vida."

Hermes Trismegisto